Higienização Compulsória

A internação compulsória é um mecanismo do Estado que tem como objetivo a internação de dependentes químicos para tratamento. Sua legalidade baseia-se primariamente no Código Civil, especificamente na lei 10.2016/2001, que trata da reforma psiquiátrica e prevê três tipos de internação para pessoas com transtornos mentais e dependentes químicos: a voluntária; a involuntária, quando a iniciativa parte do médico ou dos familiares; e a compulsória, designada por um juiz. A grande questão é como o Estado se apropriou de uma lei que regulariza a internação de casos específicos – que requerem estudo e acompanhamento prévio – para realizar uma retirada em massa dos viciados da rua, contrariando o entendimento dos próprios defensores da reforma psiquiátrica acerca da legislação.

Agentes da prefeitura do Rio contra usuários de crack. Foto: Adriana Lorete

Agentes da prefeitura do Rio contra usuários de crack. Foto: Adriana Lorete

Neste contexto, o primeiro passo para regulamentar definitivamente a utilização dessa política específica para dependentes químicos partiu do deputado federal Osmar Terra (PMDB-RS), autor do projeto de lei nº 7.663/2010, que autoriza a internação compulsória sem uma avaliação prévia do paciente.

 O que de fato essa atitude do Estado representa?

Em primeiro lugar devemos identificar os principais atingidos por essas medidas. Ao contrário do que circula na grande mídia, não são as drogas – principalmente o crack – que dirigem o usuário à situação de rua, mas o inverso. Os principais motivos que levam um indivíduo a tal situação estão relacionados a conflitos familiares, abusos sexuais, desemprego, falta de moradia etc. Em resumo, fatores de ordem social.

A política de internações compulsórias é amplamente combatida por profissionais da área. O psicólogo e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Tulio Batista Franco  defende que a internação compulsória prejudica o processo terapêutico, pois atenta contra a questão da confiança, fator decisivo na relação paciente/equipe de tratamento. Como um paciente que é internado a força, na maioria das vezes de forma violenta, pode confiar na equipe que vai tratá-lo? De acordo com o Conselho Federal de Psicologia, o PL 7.663/2010 aponta para um retrocesso no tratamento clínico desses pacientes.

Vídeo do Conselho Federal de Psicologia contra a internação compulsória

Os problemas estruturais para implementação dessa política do Estado se apresentaram logo nas intervenções iniciais. No Rio de Janeiro, já nos primeiros dias da execução das internações compulsórias, o Ministério Público do estado teve de intervir. Reuniu-se com as secretarias de saúde e assistência social para regularizar ilegalidades envolvendo o tema das internações. Segundo o MP-RJ, o governo municipal estava agindo de forma ilegal ao realizar a retirada de pessoas das ruas sem que tivesse estrutura, como leitos, abrigos e profissionais capacitados, para receber a demanda de pacientes.

Os abrigos existentes não estão fisicamente preparados para atender à demanda e não há profissionais treinados. Em uma entrevista para o G1, Ademir Treichel, coordenador do abrigo de maior capacidade construído para atender o público das internações, afirma que o local é um ambiente de reintegração social e não de tratamento. O abrigo fica no bairro de Paciência, área afastada do centro da cidade e marcada por conflitos entre traficantes e milicianos de duas comunidades vizinhas. Há tráfico na porta do abrigo e os internos têm passagem livre. Quem vai visitar um residente não pode fotografar as instalações nem conversar a sós com o interno. A estrutura é insuficiente para o número de pacientes e a higiene pessoal chega a ser um critério para obtenção de um leito. Muitos residentes afirmam que há situações de abuso contra eles, inclusive sexual.

O que se pode perceber é que essa política trata-se, na verdade, de mais uma estratégia de limpeza urbana, removendo parte da população das áreas centrais e a escondendo em regiões afastadas. Esta higienização faz-se necessária no contexto dos grandes eventos que a cidade está prestes a receber e obedece às demandas do capital especulativo imobiliário, conforme afirma Marcos José Duarte, professor e assistente social da UERJ, ao citar o aumento vertiginoso dos preços de imóveis na Lapa como exemplo.

Charge

Um apontamento importante é o caráter de privatização da saúde pública ligado à política de internação compulsória. O PL 7.663/2010 prevê tanto o financiamento estatal para as internações voluntárias em clínicas privadas quanto a utilização destas no caso de falta de leitos nas instituições públicas. Há, também, convênios com comunidades terapêuticas particulares, que, segundo o Prof. Marcos Duarte, têm um conteúdo moralista, conservador e, sem sua maioria, são gerenciadas por evangélicos fundamentalistas.

O vereador Renato Cinco (PSOL-RJ) está recolhendo assinaturas para instalar uma CPI que pretende apurar as denúncias de maus-tratos, ineficiência do tratamento e desvio de verbas nos abrigos. A Frente Estadual das Drogas e Direitos Humanos do Rio de Janeiro também trabalha para melhorar o sistema de atendimento aos usuários de drogas e moradores de rua.

O Ministério Público, na última quinta feira 11/04, entrou com uma ação civil pública contra a Prefeitura do Rio de Janeiro, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, e o secretario de governo, Rodrigo Bethlem. O promotor pede a cassação do mandato do prefeito, mais a perda de direitos políticos por cinco anos em decorrência das remoções violentas e ilegais de dependentes químicos e moradores de rua. Além disto, o MP-RJ reivindica uma indenização pública a cada um dos removidos, somada à outra indenização, por dano moral difuso, a ser paga pelos acusados ao município do Rio de Janeiro.

Aqueles que se opõe a esse processo desencadeado pelo Estado apresentam algumas alternativas à internação compulsória, como os consultórios de rua e os Centros de Atendimento Psicossocial (CAPS).  “É preciso haver um investimento massivo no treinamento destes profissionais. Em vez de dedicar recursos públicos às comunidades terapêuticas que acolhem os internados compulsoriamente, o governo deveria investir mais na rede psicossocial”, aponta o Prof. Túlio Franco. Além de recursos na área da saúde são necessários investimentos nas áreas de habitação, educação, justiça e trabalho.

Há, portanto, uma política pública perversa entrelaçada a diversos interesses privados, subjugando ainda mais uma parte da população que já sofre por conta da exclusão. A higienização em curso nas grandes cidades, principalmente no Rio de Janeiro por causa dos mega eventos de 2014 e 2016, é real e deve ser combatida.

Leiam também:

A pedra da exclusão

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Sobre Pollyana Labre

Graduanda em história na Universidade Federal Fluminense.
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2 respostas para Higienização Compulsória

  1. Ivan Dias Martins disse:

    Pollyana, muito bom o texto. Me fez pensar numa coisa, quando você diz que há uma privatização da saúde pública em meio às internações. Me parece que há algo mais do que somente isso. Há também uma mercantilização da própria pobreza enquanto alvo de uma assistência pública ou enquanto alvo de uma intervenção pública. Uma criação de um mercado onde antes só havia um problema, com o recolhimento e “tratamento” dos dependentes como uma mercadoria da qual o Estado, por meio desse repasse ao setor privado, se torna um consumidor. Me parece que o Estado tem aí, e em outras instâncias do seu papel interventor/assistencial como com o abrigo de órfãos, desempenhado um duplo papel: não só de autoridade legal/policial/assistencial, mas também o de constituir valor daqueles que antes estavam à margem do sistema de produção normal, à margem de serem produtores eles próprios de valor a ser extraído. Se não podem ser trabalhadores produtivos, podem desse modo passar a constituir uma espécie de recurso a ser explorado, a ser mercantilizado, através da privatização de uma função pública.

  2. Parabéns pelo bom texto Pollyana.

    Artur Henriques.

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