Vigilância e controle de conteúdo na internet

Admirável mundo novo ou 1984? Os dois.A internet hoje é uma das tecnologias mais marcantes na vida cotidiana de grande parte da população urbana e até em parte de segmentos mais excluidos da sociedade. Ela aparece como uma grande ferramenta de comunicação e produção de conteúdo, como uma forma inédita de integração. Há, contudo, uma super valorização da internet como espaço de liberdade e abertura para o novo. É inegável que ela tenha aberto possibilidades nunca antes imaginadas e que continue sendo campo  de relações extremamente inovadoras. Porém, como qualquer outra esfera da sociedade, por mais nova e ainda inexplorada que seja, ela está sujeita às relações sociais que permeiam todos os outros campos da vida. É uma área plena de conflitos e contradições, que articula dentro de si as mesmas disputas que se dão no lado de fora, ainda que com as especificidades determinadas por sua dinâmica própria.

A internet é uma rede distribuída, mas, ainda que ela não dependa de um único ponto central por onde toda a informação passa, ela depende de uma infraestrutura que é controlada por um pequeno grupo de empresas de telecomunicações e governos. Mesmo que você esteja no Brasil e queira se comunicar pela internet com outra pessoa também no Brasil, é muito provável que este contato esteja, de uma forma ou de outra, passando por outro país — normalmente pelos EUA, onde grande parte da infraestrutura da internet está localizada. Essa centralização física (e lógica) é um problema já apontado por diversos ativistas, e existem tentativas de criar novas estruturas de redes, completamente descentralizadas, em que cada participante da rede poderia servir de caminho para os outros. Mas essas obviamente ainda estão muito longe de ser capazes de substituir a internet como conhecemos. Já temos aí uma limitação material e prática do suposto reino da liberdade.

Mas e o conteúdo? O discurso corrente é de que a produção e divulgação de conteúdo na internet é extremamente democrática, que qualquer um pode publicar o que quiser, e que mesmo conteúdo produzido por quem não conta com uma grande estrutura de divulgação pode atingir um publico enorme, impensável sem a internet.

Ainda que sejam inegáveis os avanços da internet nesse sentido quando comparada aos meios de comunicação em massa tradicionais, toda publicação na internet é também, de alguma forma, mediada. Quem controla a infraestrutura sempre pode censurar conteúdo. O governo dos EUA faz isso regularmente com sites condenados por compartilhamento ilegal de arquivos, usando parte da infraestrutura da internet ainda controlada por eles. Mas o controle sobre a publicação acontece com muito mais frequência de maneira muito menos aparente.  Uma enorme parcela do conteúdo publicado atualmente na internet é publicado através de produtos controlados por um grupo muito pequeno de empresas (Google, Facebook, Yahoo, WordPress e talvez mais algumas outras). Isso torna possível que quase qualquer um possa, por exemplo, gravar um vídeo, publicá-lo no Youtube e compartilhar com milhões de pessoas pelo mundo inteiro sem que precise saber nada sobre como a internet funciona, como hospedar um site que tolere milhões de acesso, etc. A questão aqui é que mais uma vez a gestão do conteúdo está nas mãos de um grupo de empresas não muito maior do que as que controlam os meios de comunicação mais tradicionais.

Essas empresas podem remover, de maneira completamente unilateral, todo esse conteúdo democraticamente produzido. Isso acontece regularmente sob os mais diversos pretextos, e sem levantar nenhuma das questões que talvez fossem levantadas se a censura tivesse por trás um ator estatal. Mas é importante destacar que o controle não passa apenas pela remoção direta do conteúdo. Ele assume várias outras formas, muito mais sutis.

A primeira delas é a possibilidade que esses pontos centrais de distribuição de conteúdo têm de acompanhar toda publicação feita por uma pessoa. É cada vez mais difícil publicar e visualizar conteúdo de forma que isso não seja ligado a você. Os governos não precisam mais criar programas gigantes de vigilância sobre a população (mesmo que eles ainda insistam muito em fazer isso): basta buscar, sob demanda, as informações nessas grandes empresas que já sabem tudo sobre cada um de nós.

Além disso, nosso conteúdo é constantemente silenciado de formas quase imperceptíveis. O Facebook, por exemplo, não divulga necessariamente o conteúdo publicado em uma página para todos os seus seguidores. A única forma de garantir uma audiência para seu post é pagar para promovê-lo.

Outra questão que costuma passar despercebida é o controle através da forma. O Twitter limita suas publicações a 140 caracteres. O Facebook mudou a nossa forma de interagir com o mundo trocando o esforço de descrever o que achamos de algo por um clique em “curtir” que pode dizer quase qualquer coisa. Nos livrou da hercúlea tarefa de descrever um link ou vídeo que compartilhamos, mostrando o site na hora ali pros seus amigos. Nos treinou a reagir imediatamente a uma imagem com um texto sobreposto e nunca clicar em “ler mais”. A tão exaltada comunicação livre é cada vez mais consumo descerebrado em busca de uma satisfação imediata, não muito diferente daquilo que era pra estar sendo destruído pela internet.

O pior de tudo é que essa estrutura se impõe cada vez mais. Os governos tentam regular a internet pra tornar publicações anonimas cada vez mais difíceis (o parlamento europeu, por exemplo, aprovou uma diretiva que exige que todos os Estados-membros mantenham informações de telecomunicações de seus cidadãos por pelo menos seis meses). Cada vez menos usuários da internet sabem publicar seu próprio site, sem passar por um desses serviços. E, mesmo que a pessoa seja capaz de fazê-lo independente desses serviços, isto não importa, por que quem não os usa está condenado a ficar perdido sozinho num canto escuro da internet, já que a própria divulgação do conteúdo está cada vez mais atrelada a esses grandes centros.

O Google anunciou em Março o fim do Google Reader (um serviço de agregação de conteúdo de sites e blogs), alegando necessidade de deixar de lado serviços pouco utilizados para dar um foco maior em seus outros projetos. Com isso, a empresa – que continua desenvolvendo carros que dirigem sozinhos e óculos ligados à internet – abandona um padrão aberto de divulgação de conteúdo em nome de suas plataformas fechadas. Pior ainda, anunciaram que vão abandonar o protocolo aberto que usam para mensagens instantâneas entre seus usuários (com o gtalk) que permite trocas de mensagens que não são acessíveis ao provedor do serviço (usando criptografia ponto a ponto) por seu próprio protocolo completamente fechado.

Felizmente, essa tendência encontra uma resistência. Algumas pessoas aproveitam a existência de soluções técnicas para alguns desses problemas e tentam promover a publicação independente de conteúdo ou a comunicação anônima na internet, outros adotam táticas de guerrilha para levar comunicação segura a ativistas do mundo inteiro ou atuam em várias outras frentes defendendo a liberdade e a privacidade na internet.

Não há uma solução mágica para essa situação, afinal, estamos publicando em um blog hospedado em um desses grandes grupos e divulgamos nossas publicações através de outro. Há, porém, práticas importantes que podem começar a se tornar mais presentes no cotidiano de quem usa a internet. Uma questão fundamental é o conhecimento desses mecanismos que estão por trás do que quase magicamente aparece na tela do computador. É fundamental no mínimo entender o funcionamento das tecnologias para não ser escravo delas.

Quanto aos passos mais largos desse processo, pode-se estudar e investir  nas iniciativas que já existem em favor da liberdade na internet. Sobretudo relacionando essas lutas ao caráter capitalista dessa rede. Afinal, ainda é um campo com grande abertura e possibilidades para a luta.

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5 respostas para Vigilância e controle de conteúdo na internet

  1. Ivan Dias Martins disse:

    Muito bom o texto, Flavio. Coloca questões também sobre a tática de oposição a este controle progressivo que acabam refletindo as questões táticas dos movimentos mais tradicionais (ação direta ou reivindicação legal, conspiração ou publicidade, etc.) que só mostram como a internet não é um plano separado do resto da nossa situação histórica e política.

  2. Wesley Carvalho disse:

    Texto excelente. É bizonha essa coisa da internet como rede de controle e vigilância e ao mesmo tempo com aparência de espaço livre. Parece criação engenhosa de escritor de ficção científica.
    Sobre a internet como objeto de censura, lembro que são muitos os casos no Brasil de ativistas que tem blogs fechados pela Justiça, especialmente em cidades pequenas onde atuam com denúncias.

  3. Fábio Frizzo disse:

    Acho cada vez mais fundamental para a esquerda anticapitalista se debruçar sobre a internet, seja nas suas possibilidades como ferramenta de luta ou na resistência contra seus usos opressivos. Difícil pensar que qualquer movimento social possa ter sucesso numa mudança radical da sociedade sem dominar e usar as ferramentas de luta que a internet proporciona. Por vezes, questões técnicas dificultam o entendimento de nós, leigos, mas aprendemos a usar coisas como facebook etc com tanta facilidade que talvez fosse o caso de um esforço educacional para entender mais sobre os perigos e possibilidades digitais. Nisto, mais textos como estes são fundamentais. Ainda mais em momentos em que a política internacional aparece na mídia se utilizando clara e abertamente dessas tecnologias de vigilância. Espero que o Flávio nos brinde com novos textos como estes!

  4. marioruivo disse:

    Reblogged this on Mario.Ruivo Blog and commented:
    Adicione suas ideias aqui… (opcional)

  5. Pingback: Apontamentos Gerais sobre os Mega Eventos, o Terrorismo, o Brasil e a Esquerda | Capitalismo em desencanto

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