É muito sedutora a metáfora do ‘efeito borboleta’, da teoria do caos, para momentos como esse: um sujeito taca fogo no próprio corpo e semeia a Primavera Árabe; manifestantes contra a derrubada de um parque em Istambul iniciam a revolta na Turquia; um aumento de vinte centavos inicia esse movimento no Brasil que ainda vamos nomear. Mas muitos se esquecem do óbvio: não basta o bater de asas de uma borboleta, e sim uma conjunção de fatores, como correntes de ar, pressões e temperaturas de tal modo predispostas para que, aí sim, agitadas por uma bela borboleta, se desencadeiem num imenso furacão. E aí emerge a assustadora beleza da História, entre acasos e determinações o tempo passa e as sociedades prosseguem. Por que aconteceu agora e não antes? Isso permanecerá como um inexplicável, mas não incompreensível; depois de tanta opressão, alguma hora a panela social explode. O que faremos agora e o que virá depois? Isso está posto como o problema, mas não como tábula rasa; o futuro emerge do passado, em diálogo com ele, e haja o que houver, será resultado das ações e pretensões, julgadas pelos dois olhos de Clio: sorte e morte, acaso e determinação.
E eis que, no olho do furacão, para quem já milita em movimentos diversos há algum tempo, nos vêm todos os sentimentos possíveis: exaltação – a revolução tá acontecendo, mané! – angústia – os reaças tão vindo pra rua!, tão mandando baixar as bandeiras vermelhas e perseguindo militantes! – frustração – não tem uma palavra de ordem, não tem organização! – vitória – eles estão baixando as passagens em todo lugar! E por aí vai, nos tomamos entre agonia e glória, o sentimento de urgência para avançar nas lutas sob o receio gritante de ver o movimento descambar para as tendências reacionárias hodiernas. Mas talvez, com um pouco de reflexão, devamos chegar à conclusão inicial de que não poderia ser diferente; sabemos que nós, da esquerda radical, por mais que defendamos demandas favoráveis à grande maioria da população, não somos maioria; sabemos que tem muita gente indo pela primeira vez para protestos, muita gente que há pouco tempo chamava manifestação de baderna (e ainda chama, provavelmente); sabemos, ou deveríamos saber, que quando o movimento ganhasse a imensa proporção que ganhou, todo mundo ia querer pautar suas causas.
Aí, então, percebemos a nossa imensa tarefa imediata, a de disputar os atos por dentro, de centrar fogo nas causas iniciais, como melhoria dos transportes públicos e crítica aos gastos com a Copa, e contra os discursos ingênuos (ou mal intencionados) do anti-partidarismo e anti-vandalismo. E isso não pode ser visto como desfavorável a nós, muito pelo contrário, pois mesmo que muitas bandeiras estejam sendo imputadas aos manifestantes, elas são em geral bandeiras do nosso lado; é claro que o objetivo de levantar a bandeira contra a corrupção é de tornar as manifestações tão genéricas que percam a possibilidade de realização imediata de suas reivindicações, mas não se esqueçam que o combate ao desvio de verbas é também uma bandeira de esquerda; é claro que o discurso contra o enfrentamento e pelos atos pacíficos está voltado contra nós, mas as mídias já abandonaram o discurso contra as manifestações, estão elogiando os atos, e isso é reflexo de sua própria legitimação, e reflete em mais gente na rua. Ademais, não podemos esquecer o poder pedagógico desse movimento, estão ocorrendo manifestações em cidades conservadoras do interior, muitos estudantes, muitos jovens, estão nas ruas, muitas informações estão varando pela internet, e isso é, de certo modo, irreversível, não sabemos, mas podemos esperar que manifestações no futuro já sejam vistas com olhos diferentes pela média da população. E, com tanta gente reprimida pelas polícias militares (muitos, também, pela primeira vez), velhas e esquecidas questões, como a desmilitarização das polícias no Brasil, estão ganhando corpo.
É claro que tudo não são flores, e pétalas podem facilmente ser arrancadas pelos ventos de um furacão. O movimento não está dado, há riscos, e, mais, não podemos mais ignorar que nós, como esquerda radical, hoje, não temos um projeto social abrangente para a tão desejada revolução como tivemos (com todos os problemas e contradições) ao longo do século passado. Porém, contraditoriamente, temos ao nosso lado justamente as experiências passadas; sabemos como o nacionalismo serviu como forma de ofuscar as diferenças internas a cada sociedade nacional, levando, não à revolução internacional no início do século XX, mas à Primeira Guerra Mundial. Sabemos como depois de governos populistas, quando os governantes já não conseguem segurar as demandas populares, os setores dominantes tentam se articular para dar o golpe e conquistar de volta o Estado totalmente, sem concessões sociais e com muitas cassações políticas, como em 1964 no Brasil, e em tantos outros países. Por outro lado, não temos um grande projeto, mas tivemos a experiência do socialismo como foi implantado para refletir, além de infindas experiências localizadas, anteriores e mesmo atuais, de movimentos autonomistas, autogestionários, focados em políticas setoriais como cultura, educação, agricultura, economia, política, que, mesmo localizados, sem dúvida são experiências fundamentais para a tão sonhada construção do outro mundo que queremos, mais que ainda não concebemos.
Penso, então, que está aí posta a grande tarefa de nossa geração, a recriação de um campo de esquerda radical, que reúna as muitas tendências que foram se fragmentando ao longo do século passado. Aproveitemos o momento em que o discurso anti-partidário e anti-vandalismo está vingando para perceber que pelo menos duas de nossas grandes tradições revolucionárias estão sendo atacadas: o marxismo, mais pela crítica aos partidos, e o anarquismo, mais pela crítica ao enfrentamento direto. Coloco nesse caldo, ainda, os setores que se distanciaram das organizações partidárias e sindicais, focando-se nas ONG’s, muitas das quais elaboram trabalhos muito bem sucedidos nas suas áreas específicas, ainda que submetidas a verbas de governos e fundações ligadas ao grande capital; muitas dessas experiências podem e devem ser aproveitadas para a construção de nossos projetos. É evidente que não acredito no fim das discórdias entre todas essas tendências, não defendo apenas uma postura reativa contra os que nos atacam, ao contrário, acredito que quando novamente se confrontarem em um campo comum, dos debates e contradições surgirão novas questões para futuros projetos de sociedade. Também não acredito que seguiremos adiante insistindo na cultura política arraigada entre nós, nas formas atuais de nos organizarmos, de disputas fratricidas entre correntes pelas direções de sindicatos e centros acadêmicos, as mesmas palavras de ordem e sua estética de rimas já pobre, quando não disrítmica e dissonante, as mesmas assembleias intermináveis em que se discutem vírgulas com paixões vibrantes, em que questões de ordem viram defesas de propostas, levando a perda de questões importantes nos encaminhamentos finais. É preciso levar em conta o quanto dessa cultura acrescenta às críticas que temos recebido, e, mais importante ainda, que a imensa maioria dos que estão indo às ruas hoje não compartilha dessa cultura. Agora, não será fora de nossos fóruns que uma nova cultura política revolucionária surgirá, e nossos fóruns, partidários, de movimentos e frentes amplas, que antes estavam esvaziados, estão novamente enchendo com esse movimento; no nosso tempo, os debates estão se aprofundado, pessoas novas estão se juntando. É preciso, assim, mudar por dentro, trazer quem não tem experiência para dentro de nosso campo, e, se vamos quebrar o pau nos debates, que nos concentremos no futuro de nosso movimento, e não apenas em relembrar traições antepassadas, de gerações que não são mais as nossas.
Enfim, a História está de olho em nós, com seus muitos dois olhos, sorte e morte, lembrança e esquecimento, passado e futuro… Não vamos deixá-la na mão, na contramão, vamos engrossar o caldo dessa tormenta, com vistas à revolução.
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