“Fascista!” é como que um xingamento não muito difícil de presenciar na política das ruas. Longe de ser uma acusação gratuita, ele é o sinal de uma sensibilidade política atenta aos poderosos esquemas de violência e domínio sociais presentes cotidianamente.
Mas um observador atento poderia perguntar: “se há fascismo por aí, onde estariam a suástica, o Grande Líder e a câmara de gás?” Essa mesma pessoa (vamos imaginá-la, por puro acaso, como alguém da GloboNews) se afligiria também pensando em “como poderia haver fascismo agora no Brasil se temos solidez nas instituições democráticas, se há eleições livres e alternância regulamentar de poder?” Então, como assim “fascismo”?
A definição dessa bagaça pode seguir muitos caminhos. Ela pode trabalhar com referenciais psicológicos ou sociológicos; ela pode compreender o fascismo a partir de concepções de individualidade e personalidade ou pode ter enfoque em arranjos de poder e lutas entre classes sociais e grupos políticos. Por sua vez, esse pequeno texto aqui não tem grandes pretensões analíticas e vai se limitar a elencar, de forma pouco articulada, algumas características candentes da sociedade brasileira. Com isso, não concluiremos que vivemos exatamente como na Itália e Alemanha daqueles anos: sem dúvida nossa capacidade hoje de respiração é maior (apesar do gás lacrimogêneo). Mas não faltam elementos estruturais que nos apontam que vivemos debaixo de um regime não só conservador como também perverso e autoritário.
O fascismo busca uma ordem. No senso comum, “ordem” é entendida positivamente como tranquilidade ou normalidade mas se não quisermos ser muito ingênuos devemos pressupô-la também como manutenção de hierarquias, desigualdades e controle. O fascismo é vigilante contra ao que pode afetar essa ordem, ao que pode subvertê-la, como historicamente a mobilização de esquerda dos trabalhadores (que poderia trazer um ateísmo destruidor da moral cristã e dos bons costumes, e cujas ideias de igualdade só poderiam resultar em caos). O ideal de preservação da saúde da sociedade que tem o fascismo também o leva a estigmatizar certos grupos e indivíduos. Outro exemplo histórico aqui é o dos judeus (cuja avareza e desonestidade teriam trazido desgraça para a Alemanha, cuja lábia corromperia as jovens filhas virgens arianas, etc.). O fascismo, portanto, é típico de uma sociedade em crise que alimenta sentimentos de ameaça, de insegurança e de paranóia.
Em uma sociedade tão problemática como a nossa, pipocam sempre as perturbações à “normalidade”, seja do ponto de vista daqueles que estão no topo do poder (e tem que, por exemplo, se virar com sem-terras e índios ocupando propriedades), ou seja do ponto de vista cotidiano de um cidadão comum (que vai pela Linha Amarela de madrugada pensando em tiroteio e depois para no sinal vermelho pensando em assalto). Diante de um certo conjunto de possibilidades de interferência na organização ordeira e tranquila da vida (que para os exemplos que utilizamos seriam uma terra que produz lucrativamente e uma avenida sem bandidos), a resposta histórica e presente mais básica e fundamental da sociedade brasileira é o acionamento da violência policial. Essas soluções de força são fascismo.

Família tira foto com o blindado “Caveirão” nas imediações do Maracanã na final da Copa das Confederações.
É claro que podemos imaginar momentos em que a ação policial é desejável e positiva. Por exemplo, para impedir algum estuprador. Mas é desnecessário dizer que o trabalho da polícia no Brasil está muito longe do “servir e proteger” puro e simples. Ela ignora as noções mais básicas de direito e justiça, além de assassinar inocentes (deliberada ou acidentalmente). Ora, o sentimento fascista da sociedade é a legitimação e positivação desse modus operandi. Com isso não quero dizer que as pessoas comuns são perversas: todos nós procuramos fundamentar nossa vida social em valores de correção e paz. Mas o interessante sobre fascismo é que a brutalidade e a injustiça são apoiadas moral e politicamente justamente pelo cidadão-de-bem-honesto-pai-de-família-trabalhador-pagador-de-impostos-bom-cristão. Esse apoio pode ser consciente ou não dos seus significados e consequências; pode ser bastante ativo ou irrefletido. Ele não é necessariamente derivado de caráter mau e violento. O mais importante é notar que, diante de medos de que o filho seja assassinado, de que o carro sem seguro seja levado, de traumas de violência já sofridos, etc., o sentimento de revolta e de vingança assumem o primeiro plano (e a audiência do Datena sobe). O resultado é que ele nos faz apoiar um belicismo inconsequente, que nos deixa pouco sensíveis ao fato de que pessoas morrem banalmente e tem sua vida sob terror quase permanente, sobretudo os favelados. Daí que, diante da recente matança na Maré, houve muito menos um sentimento de escândalo para com a morte de 3 trabalhadores do que uma sensação geral de que aquilo foi efeito colateral do combate normal ao crime.
Nessa atitude social, podemos distinguir outras duas características muito próprias do fascismo. A primeira é ideológica. O caldo que forma a mentalidade fascista (crise, sentimento de ameaça, etc.) não permite maiores reflexões sobre as formas de funcionamento da sociedade e seus problemas. As formulações e propostas de mudança mais complexas são postas de lado em benefício de concepções maniqueístas e simplistas. O que prevalece portanto é uma tacanha noção de Bem x Mal, de aliados e inimigos. E é assim que se apresenta o nosso problema de violência urbana, por parte da mídia e do Estado, implícita ou explicitamente: o bem seria a nossa polícia, que com suas ações defende nossos filhos e patrimônios; o mal, os bandidos que ameaçam a ordem da vida. Segundo esse discurso delimitador, diante dessa guerra nos cabe apenas escolher um lado (obviamente o do bem) e torcer por ele. E assim ficam obscurecidas questões fundamentais que explicariam as próprias raízes da violência urbana como o fato de que a polícia é grande cúmplice do crime organizado com o oferecimento de proteção e armas, e de que a lógica do confronto nas favelas praticada há mais de 100 anos é na melhor das hipóteses inútil (o que inclui a UPP, cujo marketing é o de combate à criminalidade, quando, na realidade, o resultado é uma relocalização).
A segunda característica é a alienação política (“alienação” significa ser alheio): o poder de Hitler e Mussolini era concentrado, profundamente hierarquizado, baseado na concepção de que o líder era bom, capaz e estava a favor do povo. As massas eram mobilizadas e engajadas mas o eram de forma passiva e submissa. Hoje, como opinião pública, nós estamos concedendo ao Estado o controle de uma estrutura de poder e a decisão de vida e morte. Ou seja, como coletividade estamos depositando a confiança e a agência nos fardados e nos políticos ao invés de exercermos nossa soberania através da simples aplicação das leis ou de formas alternativas de organização e gerenciamento das polícias (há muitas ideias por aí mas elas simplesmente não chegam no debate público).
A questão do fascismo hoje não é apenas referente ao problema da segurança urbana. O fascismo também é uma solução de força a favor do status quo, e da distribuição desigual do poder. Nos casos da Itália e da Alemanha, o fascismo surgiu como grupos terroristas contra as mobilizações de esquerda dos trabalhadores. As tradicionais burguesias que comandavam esses países, assustadas com o avanço das perspectivas revolucionárias e em um contexto de crise, optaram por se aliar e entregar o governo aos partidos fascistas. Hoje em dia, ainda não está em pauta um projeto revolucionário de sociedade, mas as mobilizações sempre constituem um potencial ameaçador. Para os atuais governos e seus aliados empresários, mesmo as manifestações pacíficas são intoleráveis. Daí que sua resposta é uma violência desmedida e absurda, que ignora a lei e princípios éticos mais básicos. O leitor que não está à reboque das narrativas da televisão, sabe que o número de agressões físicas “aleatórias” já está na ordem dos milhares, e contabiliza pelo menos uma pessoa morta. Em relação às prisões, a realidade é kafkaniana: há detidos por porte de vinagre, por não ter documento e “estar na praça”, por levar um tiro de borracha da própria polícia, etc.

PM apontando arma para professores grevistas (2011)
O fascismo, portanto, é um sistema onde não reina o direito ou a justiça, mas a força bruta e a opressão. Ele não é um sistema exótico mas funciona ao lado da chamada normalidade democrática. Ele não é típico de culturas “frias” européias, mas está em funcionamento agora, nas nossas metrópoles, sem que sua etiqueta esteja à vista. É importante, portanto, que sejamos alarmistas quanto suas possibilidades de crescimento dentro da sociedade e solidários para com suas vítimas atuais.
Esse texto já vai muito longo mas, se ainda sobrar paciência, é importante pontuar que fascismo não tem apenas a ver com violência policial e coisas de segurança pública, economia e Estado. A normalidade e a ordem também procuram se impor nos terrenos mais subjetivos com objetivos de controle e opressão. Há na nossa sociedade uma (por assim dizer) cultura fascista bastante generalizada, onde o ódio e a violência podem ser mobilizados banalmente. O homossexual e a mulher são vítimas clássicas nesse caldeirão proto-fascista brasileiro: além de enquadrados e impossibilitados de formas de expressão e vida, são ainda largamente assassinados.

Manifestante feminista na Alemanha (2012). A pintura no corpo diz “escravidão sexual é fascismo”.
Ainda não terminei de ler o texto, mas queria destacar uma coisinha. Você usou a frase “Por exemplo, para impedir algum estuprador.”. Há um problema, a princípio, nessa formulação (acho que é do jeito que foi escrito, apenas, o problema, e não da ideia em si). Uma pessoa só se torna “estuprador” DEPOIS de ter estuprado alguém. Do jeito que a frase foi formulada, parece uma coisa meio “minority report”, o que fere princípios básicos de direitos humanos, justiça, etc. O que eu imagino que você tenha querido dizer, é “impedir um estuprador de reincidir no crime”, ou algo do tipo. É isso, mesmo? Sugiro reformular a frase se for o caso, pois ficou meio confusa.
interpretação de texto marilia, o autor só esta usando um exemplo pra ilustrar o argumento naquele ponto, não é uma proposta de debate, não exagere!!
Marília, a frase de fato ficou ambígua.
Legal você citar o “minority report”: é algo que sempre me vem à mente quando penso em polícia.
Obrigado pelo retorno.
Não esqueça, Marilia, que muitos (MUITOS) estupradores estão soltos e repetindo suas atitudes canalhas e violentas.
Também fiquei encucada com essa frase aqui: “o trabalho da polícia no Brasil está muito longe do “servir e proteger” puro e simples.”. Primeiro, me parece que não existe “servir e proteger puro e simples”, e pelo texto acho que você também não acredita nisso (certo?). Quer dizer, sempre se serve e protege a alguém. A questão é a quem. Na verdade a polícia brasileira faz um trabalho exímio em servir e proteger… mas a quem? :)
Nunca vi tanta bobagem junta em um mesmo local. Está aí a prova de que estudar História não dá percepção social a ninguém.
E aqui está a prova de que na internet qualquer ofensa pode fazer as vezes de crítica, mesmo sem qualquer argumento ou fundamentação.
Parabéns pelo artigo!!! Claro sem ser superficial. O único adendo que faria seria colocar Stalin na lista de fascistas, porque foi tudo menos comunista…Abraço, e mais uma vez parabéns!
vendo por alguns comentarios, se percebe como a máscara serve bem, ótima análise professor Wesley continue pensando fora dacaixa, precisamos de pensadores assim.
Diferente do autor do texto, nao acrescentou nada ao debate. Diria que foi uma pessima contribuicao, mas nenhuma contribuicao houve para ser qualificada.
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