Texto escrito por Pedro Henrique Pedreira Campos, professor de Política Externa Brasileira do Departamento de História e Relações Internacionais (DHRI) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autor da tese “A ditadura dos empreiteiros: as empresas nacionais de construção pesada, suas formas associativas e o Estado ditatorial brasileiro, 1964-1985″ (2012).
Nesse período de efeméride dos 50 anos do golpe de Estado de 1964, um dos temas que tem vindo à tona se refere às continuidades da ditadura com o regime instituído após 1988. Vários são os legados daquele regime, como o chamado “entulho autoritário”, a militarização das polícias e dos bombeiros, a relativa intocabilidade dos agentes do Estado que perpetraram crimes políticos naquele período, dentre outros. Um outro que tem sido pouco mencionado, mas que foi tema de alguns grupos de estudos recentes é o da adesão empresarial à ditadura. Nessa esteira, tem sido levantadas indagações de como alguns grupos econômicos que são hoje poderosos econômica e politicamente no Brasil foram formados ou fortalecidos durante o regime, mediante um apoio à ditadura e favorecimento através das políticas postas em prática então.
Tendo essas questões em mente, desenvolvemos uma pesquisa1 com a intenção de investigar a origem histórica do poder de um setor específico do empresariado brasileiro, os empreiteiros, cujas empresas se dedicam às obras públicas de infra-estrutura. Nossa hipótese original recaía sobre o período da ditadura como um possível momento-chave para consolidação e impulso para as empresas do setor. Nesse sentido, buscávamos compreender as relações entre esses empresários e suas formas associativas com o regime inaugurado pelo golpe de 1964, tentando verificar em que medida esses empresários participaram da ditadura e em que medida foram beneficiados pelas políticas públicas postas em prática então.
O que notamos ao longo da pesquisa é que as principais empresas do setor foram formadas em período anterior à ditadura, sendo fundadas entre as décadas de 1930 e 1950, porém tiveram no período da ditadura civil-militar (1964-1988) um crescimento sem precedentes, em virtude de políticas estatais favoráveis às atividades do setor e um intenso programa de obras públicas posto em prática e que gerava uma demanda constante para essas empreiteiras.
Diante desse quadro, foram formados grandes grupos na indústria de construção pesada e, com incentivo estatal, essas empresas se ramificaram para outros setores econômicos e passaram a desenvolver, desde 1969, atividades internacionais, realizando obras em outros países. Assim, a ditadura foi responsável pela gestação de grandes conglomerados internacionais liderados pelas empreiteiras e o poder desses grupos não foi abalado com a transição entre os diferentes regimes políticos, na década de 1980.
Desde o período Juscelino Kubitschek (1956-1961), esses empresários passaram a se organizar nacionalmente em associações e sindicatos. Assim, foram criadas entidades como a Câmara Brasileira da Indústria da Construção (Cbic), formada no Rio de Janeiro em 1957, e o Sindicato Nacional da Construção Pesada (Sinicon), fundado no Rio em 1959. Esses organismos desempenharam papel relevante na desestabilização do governo João Goulart e na deflagração do golpe civil-militar de abril de 1964 e há participação de diretores dessas entidades no Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e no golpe, inclusive com contatos diretos e intensos com outros civis e militares que tiveram papéis decisivos naquele movimento. Ao longo da ditadura, esses organismos se fortalecerem e tiveram forte atuação junto ao aparelho de Estado, tendo entrada direta em certas agências do Estado e desempenhando papel decisivo na determinação da agenda das políticas públicas. É interessante notar também que, ao longo da ditadura, enquanto as organizações populares e os sindicatos dos trabalhadores foram cerceados e suas lideranças perseguidas, não havia o mesmo tipo de repressão às organizações empresariais, que se fortaleceram e se multiplicaram no período. Assim, no setor de construção civil, notamos a formação de várias entidades representativas nesse período e a complexificação das já existentes, que tinham trânsito constante junto às agências do aparelho de Estado e intensa proximidade com certas figuras da ditadura.
A adesão desses empresários à ditadura não se deu apenas com o suporte dado ao golpe de Estado e a atuação junto ao governo a partir de 1964. Também a política de repressão e terrorismo de Estado teve o apoio, inclusive financeiro, de alguns empresários, incluindo empreiteiros. Assim, a Camargo Corrêa financiou as atividades da Operação Bandeirantes, que tinha o propósito de desbaratar a esquerda armada e suas organizações, usando de métodos como tortura e assassinatos.
A partir da atuação junto ao regime e a sua colaboração com a ditadura, esses empresários foram amplamente favorecidos pelas políticas públicas postas em prática no período. O aparelho de Estado majorou sua arrecadação com as reformas institucionais postas em prática a partir de 1964 e esses recursos foram direcionados, inclusive com prejuízo de áreas como Saúde e Educação, para os investimentos e gastos em infra-estrutura, beneficiando as atividades das empresas de construção pesada.
Grandiosos empreendimentos foram realizados durante o regime, fortalecendo as maiores empresas do setor, que ficaram responsáveis por obras como Itaipu e outras hidrelétricas de grande porte, a Transamazônica e outras rodovias em diversas regiões do país, a Ferrovia do Aço e projetos no setor ferroviário, os metrôs do Rio e de São Paulo e iniciativas na área de transportes de massa, os conjuntos habitacionais do Banco Nacional de Habitação (o BNH, criado pela ditadura em 1964), as usinas termonucleares de Angra dos Reis, a ponte Rio-Niterói, dentre outros projetos de grande envergadura. Além disso, em 1969, o governo, com o suporte institucional do AI-5, estabeleceu a reserva de mercado nas obras públicas realizadas no país. Dessa forma, todas as obras realizadas por órgãos governamentais só poderiam contratar empresas sediadas no país e com controle nacional, o que veio ao encontro dos interesses dos empresários do setor. Além dessa medida, várias outras foram implementadas em direto favorecimento desses empresários, como isenções fiscais, financiamento de obras públicas no Brasil e no exterior, dentre outras medidas que ampliavam as margens de lucros desses empresários.
No que concerne à política voltada para os trabalhadores, também aí verificamos um favorecimento generalizado para os empresários, e dos empreiteiros em particular. As medidas de ‘arrocho’ salarial implantadas a partir do golpe beneficiavam empresas que empregavam numerosa força de trabalho, como era o caso das empresas de construção. Além disso, a repressão aos sindicatos permitia que as empresas ignorassem as demandas e as condições de trabalho dos operários. Com a fiscalização relapsa da ditadura em relação à segurança no ambiente de trabalho, o país virou recordista internacional em acidentes de trabalho, e o setor de construção civil era um dos principais responsáveis por essas estatísticas. Verificamos ao longo da pesquisa que para as empresas de construção era rentável manter condições inadequadas e perigosas no canteiro de obras e não dar atenção à saúde do trabalhador, visto que as multas – quando aplicadas – eram de reduzido valor. Além disso, quando ocorriam acidentes, era prática corrente a culpabilização do próprio trabalhador pelo ocorrido, isentando a empresa da sua responsabilidade. Não à toa, no final do regime, em meio ao processo de abertura política, várias greves, revoltas e motins ocorreram em canteiros de obras, inclusive de grandes empreendimentos, como na obra da usina de Tucuruí, em plena selva amazônica.
Concluímos nossa pesquisa entendendo que a ditadura foi responsável pela gestação de um capital de novo porte, monopolista, em alguns setores da economia, dentre os quais se destaca a construção pesada, no qual alguns poucos grupos chegaram a um patamar diferente, extremamente vigoroso, detendo amplo poder econômico e político. A ditadura se mostrou um cenário altamente favorável para o desenvolvimento e crescimento das atividades dessas empresas, engendrando um ambiente altamente propício para a acumulação de capital. Dado esse fator e também o fato de que esses e outros empresários tiveram participação ativa no regime, entendemos que não podemos nos referir ao mesmo como uma ditadura militar. Parece mais adequada a designação de um regime civil-militar, no qual não só militares, mas também civis foram responsáveis pelo regime. Dentre esses, tiveram amplo destaque os integrantes do empresariado, que compunham largamente essa faceta civil da ditadura.
1 O estudo corresponde à nossa tese de doutorado, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História Social da UFF entre 2008 e 2012, sob a orientação da professora Virgínia Fontes, e que deu origem à tese “A Ditadura dos Empreiteiros: a indústria nacional da construção pesada, suas formas associativas e o Estado ditatorial brasileiro, 1964-1985″.