Passeava pelo parque, e resolvi me deter no jogo de futebol que se jogava naquelas quadras. Já havia passado por ali diversas vezes, e assistido diversos jogos. Dessa vez fui atraído, mais que qualquer coisa. Havia algo ali, não sabia muito bem o quê, mas havia e pareceu poderoso a ponto de ser irresistível.
Observava o jogo, a galera, as grades, as regras, os acordos. Tudo tão similar e tão incrivelmente próximo, tão duvidoso e certeiro. Dois gols para ganhar ou perder, com o relógio quebrado (só há os “10 minutos” caso haja mais de dois times do lado de fora); quem está do lado de lá das grades se apóia e segura nela (ou será a grade na gente, mancomunada com o magnetismo da bola?), com as mesmas poses e expressões; os debates sobre ser ou não falta (talvez o “ser ou não ser?” mais universal vindo da Inglaterra); os irmãos mais velhos rebocando os mais novos para fora do campo, pendurando-os de cabeça para baixo, e os miúdos reclamando, mas ao mesmo tempo rindo e se divertindo com o passeio morceguístico; o campo que não é campo nem quadra, que não é de concreto nem de grama, mas irreversivelmente Sangue & Areia; os pernas-de-pau que são ignorados em campo porque as leis do universo e da natureza já são desafios suficientes para que eles consigam coordenar um chute a gol; a quizumba que zune bolas, e faz os que não aguentam mais esperar sua vez desfilar pelo meio do jogo dos outros, apenas para arranjar confusão, e demorar ainda mais a chegar sua vez; os que jogavam de calça jeans, e mesmo de casaco (será que também diziam à mãe que iam estudar? Que estariam na casa de algum amigo?); a mítica figura “dono-da-bola”, que só não estava em campo quando queria descansar; os xingamentos, os desafios, as mães-que-jogavam-no-meio-mas-não-mexam-com-a-minha; os que passavam e olhavam, os que passavam e paravam e iam, os que zoavam, e o que parou, olhou e foi convidado. Aceitei.
A proximidade e a familiaridade eram grandes, mas ainda não conseguia entender muito bem. Olhei então ao redor, e nas outras quadras. Adolescentes brancos jogavam tênis em uma delas, uma galera da China jogava basquete em outra, e ali na quadra ao lado o pessoal jogava futebol também, mas com camisas de clubes (na que estava havia apenas uma dessas). Isso se passou em Leicester (Inglaterra), mas a quadra onde me sentia mais à vontade era “a Bangu”: era a quadra muito engraçada, não tinha uniforme, não tinha rede. As pessoas, contudo, estavam com adereços coloridos. Impossível não pensar na Copa, e no clima que tantas vezes vivi, de enfeitar ruas, pintar o asfalto, deixar o público colorido. Aqui o enfeite e a coloração, contudo, era de cada um dos corpos, em bandanas, em meiões por cima das calças, e até mesmo em algumas fitas. Só havia homens jogando, e a esmagadora maioria era negra. Também havia chineses, paquistaneses e indianos jogando, mas eu era o único branco. E me sentia muito à vontade.
O conforto era tamanho que, ao ouvir um dos miúdos-que-foram-rebocados falar que estava com fome, que havia muito tempo que não comia, sem pestanejar ofereci as bananas que tinha comigo. Com uma cara pasma ele perguntou se eu tinha outras, e falei que não. Ele não entendeu muito bem, ou estava desconfiado, e falou que não podia pegar algo meu se fosse me fazer falta. Falei que não havia problema, que tava tudo bem, que não tinha fome e que morava perto. Imediatamente mostrou as canjicas num sorrisão e devorou as frutas. Ao me perguntar por que eu tinha feito isso, só consegui responder que achava que nunca se trata do quanto se tem, mas do quanto se está decidido a compartilhar. O rapaz, que estava com uma camisa na mão, perguntou se a próxima partida era a minha, e era. Quando entrei no campo, foi até o irmão, falou algo com ele, que tirou a camisa que estava e me ofereceu a camisa para jogar. Tentei explicar que não precisava, mas ele fez questão, explicando que a blusa que me oferecia era na verdade do pai deles (já falecido), e era a única camisa “de futebol” que eles tinham para jogar. Por isso o mais-novo estava esperando sua vez sem camisa (a ânsia o fez tirar a que não era uniforme): toda vez que um dos irmãos entrava, passava a camisa para o outro, porque era o que tinham “para jogar”, e também era memória.
Uma camisa do Milan, modelo de 2008, com o nome do Ibramovic (escrito assim), com o número 8. Terá o sucessor de Pelé sentido tamanha dignidade ao vestir o 10 canarinho depois dele? Terá alguém sentido o peso e o orgulho de uma honra tão grande, a alegria de uma dádiva tão carinhosa?
Não lembro quantos jogos joguei, quantos gols tomei e quantos marquei. Nunca vou recordar quanto tempo se passou, mesmo quando chegou mais gente e o campo se tornou ainda mais vizinho e doméstico quando se converteu em “10 minutos ou 2 gols”. Certas coisas zoam o tempo, suspendem, dão uma bicuda nele, jogam o dito cujo na casa da vizinhança-amarga-que-fura-bolas-que-lá-caem. Ficam as sensações e os coloridos.
Os coloridos dos sorrisos dos ovinhos e balõezinhos e chapéus; do sangue & areia levantando nos momentos de porradobol; nas esdrúxulas comemorações de gol; na inutilidade e suavidade e beleza e tudo aquilo o mais que aproxima o esporte da arte; dos arranhões e ralados; e o tom maior da aquarela, uma solidariedade que tocou fundo.
Uma solidariedade que costumava ser explícita e óbvia nas Copas. Nas caixinhas e colaborações para enfeitar ruas, praças, para pintar muros e asfalto. Esta, que tanto demorou a pintar desta vez.
Vai ter copa. Vai ter ingresso caro. Vai ter mais negros dentro de campo que nas arquibancadas. Vai ter repressão aos protestos. Vai ter violência, mesmo que “apenas” simbólica. A bola vai rolar. Mas essa não vai ser Copa. Em uma cidadezinha da Inglaterra, tive um gostinho do que ela já foi, é ou deveria ser. E ela não é esse elixir agridoce.
*Este texto foi originalmente escrito no sábado, 07/06/14.