Não me convidem pra essa festa pobre!

“Se votar mudasse alguma coisa, era proibido!” Sabedoria popular

Participação especial de Raphael Motta

Então é isso: depois da nossa linda festa do futebol, outubro tá aí, anunciando uma linda festa da democracia! Parece que o Superior Tribunal Federal fez algum pacote promocional com o Governo da Bahia e já vimos Carlinhos Brown, Daniela Mercury e Bell Marques nos chamando, super felizes e confiantes, para este “carnaval”!
vem-pra-urnaAo contrário do que tais anúncios e outros tantos meios de comunicação tentam nos vender, esse carnaval não vai ser colorido, não vai ser plural, não vai ser surpreendente e transformador como prometem ser os carnavais de fevereiro ou aquelas tais manifestações que insistem em não acabar. Essa festa vai ser bege, vai ser matinê, sem álcool, com hora para acabar e para terminar, bem marcada, regrada e delimitada.
Calma, calma, caro leitor! Não vou defender aqui o voto nulo (outro artigo vai), nem vou dizer que se é assim, que nos vendamos logo a essa política baixa e votemos apenas nos menos piores. O que eu quero defender aqui é: não, eleições não são a essência da festa da democracia; democracia é muito, mas muito mesmo, mais complexo do que uma simples urna.
A principal questão das eleições é que elas não foram construídas, pelo menos nessa legislação, para permitir mudanças. O jogo eleitoral permite que tenha mais espaço e dinheiro para convencimento e para debate de ideias quem já tem muito espaço dentro do parlamento. Claro, felizmente já existe a internet, que pode democratizar mais o acesso dos eleitores à informação e programas de governo dos candidatos e alguns partidos menores estão conseguindo utilizar muito bem as mídias sociais. Mas, cá pra nós, de todos os eleitores brasileiros, quantos podem ou querem gastar tempo procurando quando podem assistir 50 minutinhos de propaganda eleitoral na TV – ou colocar num canal de TV paga e nem assistir nada?
O Fundo Partidário, dinheiro que a União concede aos partidos políticos – em qualquer momento, seja de campanha ou não, é contabilizado da seguinte maneira: 5% são distribuídos entre todos os partidos de forma igualitária. Os outros 95% são distribuídos conforme o tamanho da bancada partidária na Câmara dos Deputados Federal (Lei nº 9.096/95, Art.41). Ou seja, um partido que não tem representação na Câmara deve ficar com a divisão infinita desses 5%, enquanto que partidos como o PT e o PMDB, com 88 e 73 deputados respectivamente, ficam com uma bela bolada! Em 2013, o PT recebeu mais de 47 milhões, o PMDB mais de 35, e os PROS e Solidariedade receberam a pequena quantidade de 115 mil. Além disso, a cada campanha, os partidos e candidatos recebem financiamento privado, o que causa uma grande diferença nas campanhas e nos leva a enormes poluições visuais por todo canto da cidade, com santinhos, banners, outdoors, etc, sempre dos mesmos partidos e dos mesmos candidatos. Assim também acontece em relação à distribuição do horário eleitoral obrigatório na rádio e TV (Lei nº 9.504/97, Art.47 e 51). Do dia 5 de julho até a antevéspera da eleição, no mesmo horário, às terças, quintas e sábados temos as propagandas para Presidente e Deputado Federal, com 25 minutos para cada bloco. Segundas, quartas e sextas são as propagandas para Governador, Deputado Estadual e Senador, com 20 minutos para os dois primeiros e 10 minutos para o último. Um terço de cada um desses blocos é dividido entre todos os candidatos. Os outros dois terços são divididos conforme a representação dos partidos na Câmara dos Deputados Federal. O tempo de uma coligação é a parte de cada um do terço comum somado ao tempo de cada partido na proporcionalidade. Além disso, todo dia as emissoras são obrigadas a passar o total de 30 minutos de propaganda diluída na programação, chamadas de inserções. São aqueles 15, 30 ou, no máximo 60 segundos de propaganda que a gente vê no intervalo da novela.
propagandaAgora, vamos sair da matemática e ver a disparidade de tempo na prática? Enquanto a Dilma, com uma coligação de 9 partidos tem extensos 11 minutos e 24 segundos de tempo de convencimento, os candidatos do PSTU, PCO, PSDC e PCB têm 45 segundos cada! Com 11 minutos é possível até fazer uma musiquinha que vai ficar martelando na nossa cabeça até o Ano-Novo. Com 45 segundos, dá para, no máximo, apresentar algumas propostas e chamar pra visitar o site da campanha. Infelizmente não consegui achar o tempo de inserções para a propaganda nacional, mas foi possível encontrá-lo para o estado do Rio de Janeiro. Então, além do Pezão e sua coligação de 18 partidos terem 8 minutos e 57 segundos de propaganda no horário eleitoral, contra os poucos 57 segundos obrigatórios dos candidatos do PSTU e do PCB, ele tem direito a 2 minutos e 41 segundos de inserções por dia, e os outros a apenas 17 segundos cada. Ou seja, até o fim da campanha nós veremos o equivalente a 2 horas e 55 segundos de Pezão apenas no intervalo da nossa novela contra os 12 minutos dos candidatos do PSTU e do PCB. O que isso significa? Que nós sabemos até o que o Pezão come de café da manhã, mas precisamos pesquisar na internet quem são os candidatos do PSTU e do PCB para Governador. Soa democrático para você o PSTU ter apenas 29 segundos para divulgar os seus candidatos a Deputado Federal enquanto o PMDB tem 2 minutos e 48 segundos? É possível mudar a tal da proporcionalidade que vai servir de base para as eleições de 2018?
Além da forma como acontecem as eleições, podemos refletir rapidamente sobre o sistema representativo da Câmara dos Deputados. A maioria dos candidatos diz que quer ser a voz do povo, representar o povo. Pois bem, em 2012 a Frente Parlamentar da Agropecuária, mais conhecida como bancada ruralista, era composta de cerca de 200 deputados, ou 39% da Câmara. Ao mesmo tempo, apenas 10% dos deputados se declaram negros. Parando por aqui, sem pensar na classe social predominante no Congresso, será que 39% da população brasileira é ou tem interesses nas grandes propriedades? Será que 90% da população brasileira é branca ou indígena?

Afinal, depois dessa breve análise, as eleições te parecem a grande festa da democracia, o momento máximo do processo democrático brasileiro? Que bom que não é! Temos várias outras formas de participação popular na democracia, que são previstas inclusive por lei! Afinal, a nossa Constituição, chamada de Cidadã, já começa dizendo que “todo o poder emana do povo”, ou através dos representantes eleitos, ou diretamente. Como seria essa forma de poder direto que o povo pode exercer? Seria uma manifestação, ou uma organização em partidos, núcleos e sindicatos – tudo isso também previsto na Constituição? Seria, talvez, uma greve, garantida por lei a todos os empregados e exercida principalmente pelos funcionários públicos? A minha resposta: sim, participação direta é greve, é assembleia, é manifestação, é organização sindical, é movimento social. Democracia é principalmente a garantia disso tudo, de todas essas pessoas falarem, em outros espaços que não em palanques ou púlpitos, e de serem ouvidas.
Mas, então, o que aconteceu esse ano? Além das manifestações de repúdio da Copa (que aconteceram em todo o país), garis, rodoviários e professores do Estado e Município fizeram greve, e tiveram como resposta descontos no salário (total ou parcial), perseguições políticas transformadas em ganchos (alguns rodoviários não receberam horário na escala, o que fez com que trabalhassem menos, logo, ganhassem menos), processos administrativos, realocação de escola e alguns até foram demitidos. Vale lembrar que dessas três categorias, os garis e professores são funcionários concursados da prefeitura e outros professores são funcionários do estado. Em São Paulo, os metroviários fizeram uma greve breve, mas inesperada e muito forte, em se tratando de setor privado. Além de não ter tido nenhum acordo entre a concessionária e os funcionários, muitos passaram pelos mesmos assédios e só agora alguns estão conseguindo ser reempregados. Hoje, funcionários, professores e alunos da USP estão em greve, e quase que diariamente a gente vê notícias de assédio policial. Vale lembrar que todas essas greves foram consideradas pela justiça ou divulgadas pela mídia como ilegais, o que aumentou ainda mais a repressão e os assédios, como a simples falta de reposição na rede municipal carioca, já que a Secretaria de Educação jura que teve professor substituindo os grevistas, fato até agora não comprovado em nenhuma escola.
No Rio, ainda está correndo um processo policial contra 23 ativistas, chamados de líderes no movimento dos Black Bloc. Nesse processo ainda constam nomes de sindicatos, como o Sindpetro (petroleiros), o SEPE (profissionais da educação) e o Sindsprev (trabalhadores da saúde, trabalho e assistência social). Esses sindicatos são acusados de financiamento do grupo e as provas são as doações de quentinhas e outros produtos em ocupações ligadas ao movimento social, como o Ocupa Câmara e a ocupação dos desabrigados da TELERJ. Por coincidência, ambas as ocupações, desfeitas com prisões e forte ação policial, não “invadiram” nenhuma propriedade privada: o Ocupa Câmara aconteceu na Cinelândia, e a ocupação dos desabrigados da TELERJ nas calçadas do entorno da prefeitura e depois no pátio da Catedral, que, segundo a Arquidiocese, estava pacífica e a tentativa de negociação corria bem. Afinal, que crimes cometeram esses sindicatos e esses movimentos sociais?
Os movimentos sociais chamam, gritam, pagam para a nossa participação na festa da democracia em outubro, mas onde estavam a maioria dos candidatos a qualquer coisa quando nós gritávamos por direitos a salário digno, a moradia, a condições de trabalho e de sobrevivência? Onde estavam estes “representantes do povo” ao longo de todo esse ano? Onde eles estavam quando o Amarildo, o DG e a Cláudia morreram, quando os professores diziam que o povo não tá tendo oportunidade de educação, quando os garis afirmavam que manter a cidade limpa exige muito mais esforço quando não se tem condições de trabalho, quando os rodoviários pediam para ver um pouco de todo aquele aumento de passagem e melhores condições de trabalho? Não seria democrático apenas permitir que essas demandas aparecessem, ao invés de mandar os policiais – que só não fazem greve porque não podem – resolver os problemas da democracia popular com tiro, porrada e bomba? Que festa da democracia é essa que acontece apenas um ou dois dias do ano, que enche a cidade de lixo pro gari e seu salário de fome limparem, que promete – sempre – melhorias na educação, mas que fecha escolas e cala os professores, que diz que vai representar o povo, que tá sendo arrastado moribundo pelas ruas, que vai garantir transporte digno a custa do stress do motorista/cobrador e do bolso do trabalhador, que prefere mostrar a mesa farta do café da manhã a dizer como vai acabar com a fome de tanta gente?
urnaSão sim muitas perguntas, tantas como as formas de exercício da democracia e da cidadania. A resposta é apenas uma: não existe festa da democracia quando ela se resume a teclar alguns números numa máquina. Só isso não faz de ninguém um cidadão. Cidadania, assim como a democracia, é feita no cotidiano, é feita, sim, escolhendo muito bem o seu candidato – caso a opção seja votar -, é sim, fiscalizando o candidato escolhido caso ele tenha ganhado, mas é também se mexer ao longo dos dois anos entre uma eleição e outra, é lutar pelos seus direitos e pelos direitos de quem não está tendo os direitos assegurados. Cada um sabe como fazer isso dentro das suas possibilidades e ideologias, mas garantir que esses espaços – sindicatos, organizações sociais, garantia de greve, de manifestação – existam, isso sim é democracia, popular, com participação direta, como deve ser uma democracia real, e não em festinhas de musiquinhas chatas, de muito papel e pouco conteúdo. STE, nós #fomosprarua, e em outubro nós #vamospraurna. E, depois, no mesmo dia se necessário, enquanto você volta a dormir, nós vamos ficar nas ruas exercendo a nossa cidadania, forçando a barra para não acabar com a democracia.

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Sobre Giovanna Antonaci

Foliã, historiadora, professora e italiana quando CANNOT KEEP CALM.
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