Carta aberta de apoio ao Goleiro Aranha

Olá, Aranha. Espero que esta carta encontre-o bem, se um dia chegar a ti.

Escrevo para falar do assunto que te ronda no momento, e manifestar meu apoio. Uma coisa que tem que ficar claro é que tudo o que eu como não-negro posso oferecer é isso: apoio. Porque aprendi mais do que nunca sobre o racismo quando fui professor da rede pública estadual no Rio de Janeiro. Durante minha formação na Universidade, diversas leituras e discussões nunca foram o suficiente para me sensibilizar e ter ideia do quanto o racismo impregna as nossas relações sem que saibamos. Ou melhor, como é comum na nossa sociedade, reconhecia o racismo, mas ele nunca estava “em mim”, sempre no outro. Como tantos outros, reconhecia a existência do racismo, mas não conseguia identificá-lo, principalmente quando partia de mim.

O que me abriu os olhos foi o depoimento de estudantes. Em redações e em conversas antes e depois das aulas, pessoas jovens e negras me revelavam o que é ser ora invisível ora descartável; a redução à sua sexualidade; praticamente não existir representatividade que não seja caricata; o medo de passar perto da polícia; a quase impossibilidade de registrar queixas (contra racismo ou simplesmente contra a injúria racial); o medo do que vai acontecer quando terminarem a escola (o cenário de trabalho de amigos e parentes não é inspirador) e tantos etecéteras. Estas pessoas choravam ao contar um pedaço da sua vida. Mas também tinham a dignidade e a força para responder o deboche dos colegas e professores quando anunciavam seu desejo de fazer medicina com um “Não se preocupe que eu vou tratar bem de você mesmo assim.” E foram elas que me abriram os olhos para que eu percebesse que o que posso oferecer é apoio, que quem é protagonista da luta delas e da vida delas (será que há vida separada de luta e de vontade?) são elas próprias.

É óbvio que querem acabar com esta possibilidade para você. Apelam a uma moralidade do perdão, como se a questão fosse pessoal. Cobram de ti, Aranha, que transforme o que é uma questão social, estrutural, grande, enorme, em um caso isolado, em uma questão pessoal, Aranha-versus-pessoa-do-VT. E insinuam que se você não aceitar, os casos que continuaram a reincidir sobre você são praticamente culpa sua. Como sempre, transformam vítima em carrasco. A pessoa que te ofende participa em programas mil. Quando você tenta falar e questiona o preconceito já embutido no questionamento dos repórteres, é recebido com risos debochados e silêncio. O que é impressionante não é quererem, como você mesmo disse, “varrer pra debaixo do tapete”. O impressionante é que você resista com distinção e classe a toda esta (o)pressão. Como professor afirmo sem dúvidas: sua posição chega a ser pedagógica, professoral.

A pessoa envolvida no episódio quer se tornar um ícone contra o racismo. Inclusive, ao procurar “símbolos brasileiros contra o racismo” no Google, os primeiros resultados não sugerem Zumbi, mas a sua agressora. Você não está deixando, e ao não deixar lembra esta coisa básica que aprendi com meus alunos – as pessoas tem que ser protagonistas das próprias lutas e vidas. Quem é ícone nesta história toda é você, que não curva a cabeça e que não está cedendo a pressão que a gente, do lado de fora, e principalmente as pessoas não-negras não conseguem imaginar.

Enche de orgulho saber que você não olha para o chão, mas para o horizonte. Você levanta o olhar e questiona os repórteres no fundo dos olhos deles. Quando ergue a cabeça, não o faz sozinho, mas com todos aqueles que, como você disse, deram sangue para que houvesse esses direitos. Se há de um lado uma multidão que tenta empurrar você pra baixo, levantam a cabeça com você Rosa Parks, Zumbi, as comunidades quilombolas e tantos outros, famosos e anônimos.

Mesmo sendo Flamenguista de coração, desde o primeiro episódio e sua reação, passei a ver os VTs dos seus jogos. Agora tenho outro motivo para ter simpatia pelo Santos, além do Pelé – como jogador, apenas. Sua atuação dentro de campo também foi muito boa, mesmo sob todo este estresse. É extremamente significativo e simbólico que quem esteja nesta luta seja “a última pessoa de defesa”. Alguém cuja atuação raramente é notada, mas quando é, incomoda. Alguém que não tem com o que resistir ao avanço e ataque dos adversários que não seu próprio corpo. Para quem ataca, colocação e presença do seu corpo é uma ofensa.

Quando criança meu herói era Peter Parker, o Homem-Aranha. Era fascinado pelos seus reflexos e agilidade mas, acima de tudo, pela sua força de vontade e pela incapacidade de desistir. Às gerações futuras, falarei de um Aranha que também tinha as mesmas qualidades, mas que defendia a memória da resistência presente em sua pele, a luta pela igualdade, a conquista de direitos e o Santos.

* Texto originalmente publicado em http://captainlogg.wordpress.com/2014/09/22/carta-aberta-de-apoio-ao-goleiro-aranha/

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Sobre Renato Silva

nao fica ninguem. Professor de Historia, Flamenguista e suburbano.
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Uma resposta para Carta aberta de apoio ao Goleiro Aranha

  1. Paulo disse:

    Muito bom texto Renato.

Comentários

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