Uma experiência pedagógica na semana da Consciência Negra

Não sei ainda dar conta dos motivos que fizeram com que a 1ª Mostra de Cultura Negra do Liceu Nilo Peçanha acontecesse esse ano. Tenho flashes de memórias que me trouxeram essa questão no ambiente escolar e fora dele nesses últimos anos.

Banner da Mostra

Banner da Mostra

Trabalho com os segundos anos do ensino médio e sempre a questão da escravidão era debatida em sala de aula. Os alunos estavam acostumados a ver os escravizados de forma desumanizada, como meras coisas de seus senhores. E também acostumados a enxergar que a reação contra a escravidão veio da princesa Isabel. Ou seja, alagados de todas aquelas histórias únicas que foram contadas e recontadas.

Em 2013 fomos ao Museu Imperial em Petrópolis. Um aluno me perguntou o porquê de não haver qualquer discussão sobre escravidão no Museu. Ele tinha visto somente a caneta da Princesa Isabel. Nada falava da luta dos escravizados, dos libertos, dos jornais abolicionistas e das revoltas. Neste mesmo ano algumas alunas foram alvo de racismo na escola.

O ano seguinte começou difícil. A greve dos professores da rede estadual do Rio de Janeiro acabou com os professores sendo processados por terem feito greve e é claro que isso ia influenciar as minhas expectativas em relação ao magistério. Eu estava claramente desmotivada.

No segundo semestre fui acompanhada por seis estagiários, e dois deles, o Jonatan Agra e o Mayco Barroso, definitivamente bagunçaram o coreto da caretice. Um era arte-educador do Museu de Arte do Rio, o outro era inspetor da escola e músico.

No Museu de Arte do Rio

No Museu de Arte do Rio

Em uma visita guiada pelo Jonatan à exposição “Do Cais do Valongo à Favela”, atividade que fez parte da minha reposição da greve esse ano, os estudantes ficaram emocionados, e um me falou depois de ter visto um vídeo de uma menina negra brincando de bambolê em uma laje de uma favela em Salvador: “Professora, me dá uma toalha, porque eu vou chorar.” Depois um outro me disse: Professora, a gente podia escrever “poder” no corpo como esses caras da foto. A foto era do Carlos Vergara. Tirada na década de 1970, em meio ao desfile do Cacique de Ramos.

Desfile do Cacique de Ramos. Foto de Carlos Vergara, artista plástico que mergulhou no projeto de fotografar o carnaval do Rio na década de 1970.

Como diz um dos licenciandos, a gente “pirou” naquilo tudo e com o Jonatan, os alunos Gleice, Lucas, Marcelly, Felipe, Kamylla, Bruno, Maxuel, Eduardo, Maíra, Matheus, Betania, Reyslane, Lorena, Rafaella, Larissa, Beatriz, Camila, Mychell, Mayara e Marina criaram uma performance. Nela eles incorporariam personalidades negras e também falariam da sua própria opressão. Carolina Maria de Jesus, Dandara, João Cândido, Zumbi, Aleijadinho e Pinto Bandeira. O grito que unificaria aquelas histórias, as histórias dos estudantes como negros, mulheres, estudantes de escola pública viria a seguir: “EU AINDA SOU VÍTIMA DA OPRESSÃO.” 

O coral surgiu pela percepção de que meus alunos eram musicais. Muitos tocavam violão, bateria, piano e cantavam. Daí surgiu a ideia de cantarem um hino gospel criado na década de 1920 e que se tornou, 30 anos depois, um dos hinos pelos direitos civis dos negros nos EUA. A música seria This little light of mine. Contavam que alguns pais, preocupados com repressão de policiais nos atos pelos direitos civis nos EUA, pediam que seus filhos não fossem às ruas. Eles respondiam pedindo que os deixassem brilhar, como no hino gospel. Os alunos Igor, Victor, Fernanda, João Victor, Ludmilla, Ana Caroline, Monique, Sara, Callien, Pâmela, Geovana, Natália, Kamylla, Marina, Escarlath, Mychell e Andreia curtiram a ideia e eu e o Mayco ensaiamos com eles por duas semanas.

Coral cantando This little light of mine.

Coral cantando This little light of mine.

Black Panters

Black Panters

Daí surgiu a ideia de toda a mostra. A orientação educacional e professores de outras áreas se envolveram e conseguimos criá-la em duas semanas. Além da performance e do coral, tivemos em dois dias: oficinas de capoeira, de tranças, de samba e hip hop. Peças de teatro, cine debate e roda de samba. Os professores de educação física (Maria Silvia dos Santos) , sociologia (Natália Pereira), português (Telma Silva e Daniela Berbet) e Artes ( Aldisa Alves e Beatriz Crespo) propuseram aos estudantes trabalhos que falavam de religiões afrodescentes, um novo olhar sobre a África e racismo na mídia brasileira.

IMG_4597A proposta da minha disciplina (História) era que os estudantes fizessem uma exposição e apresentassem uma personalidade histórica negra em uma feira histórica. Foram apresentados os trabalhos sobre Nelson Mandela, Luísa Mahin, Luís Gama, Zumbi, Luther King, Rosa Parks, Panteras Negras e Manuel Congo.

Outros alunos (Gabriel, Samara e Juliana) , de forma autônoma, ainda criaram uma peça de teatro sobre o enbranquecimento da figura de Machado de Assis.

Ainda não consigo medir ou avaliar o alcance dessa experiência pra mim, pros meus colegas professores, pros futuros professores e pros estudantes. Só me vem à cabeça um discurso que uma professora e amiga compartilhou comigo na rede social. Nele, a nigeriana Chimamanda Adichie falava dos perigos da história única. Fecho com ela e é por esse caminho que a partir de agora eu vou.

Sobre Ludmila Gama

Professora da rede estadual do Rio de Janeiro e doutoranda em História pela UFF.
Esse post foi publicado em Cultura, Educação, Formação, Ideologia, Memória, Relações raciais e marcado , , . Guardar link permanente.

8 respostas para Uma experiência pedagógica na semana da Consciência Negra

  1. Juliana Lessa disse:

    Que bacana, Lud! Parabéns pra todo mundo que participou! Adorei!!

  2. Vanessa disse:

    Quero ver os alunos que estão com a camisa “poder” cantando também.

    • Ludmila Gama disse:

      Olá Vanessa. São os mesmos alunos, só que o vídeo é do ensaio e a foto da apresentação, mesmo. Como o evento foi feito na terça e na quarta dessa semana, não conseguimos ainda editar o vídeo das apresentações da Mostra.

  3. Vanessa disse:

    Parabéns!

  4. Tenho orgulho de ter sido Liceísta; concluído o meu ensino médio no Liceu Nilo Peçanha. Na minha opinião, o sucateamento da educação não atingiu totalmente essa Escola Pública em Niterói, RJ, muito por conta da motivação dos professores (que são excelentes!). Também acredito que professores com posições definidas são fundamentais na formação. Sim, isso mesmo, os que são abertamente marxistas ou não-marxistas. Por causa dessa pluralidade intelectual que vivi no ensino médio, me considero um universitário razoável e sem afetação. Parabenizo a iniciativa cultural dos professores e alunos envolvidos nesse projeto pedagógico realizado sobre a Consciência Negra. Os professores de direita são importantes e os de esquerda também. Futuramente você decidirá o Norte do seu caminho ideológico. Infeliz de quem pensa que a educação não deve ser direcionada para um fim determinado.

  5. Me emocionei aqui lendo o relato e ouvindo o coral. Atitudes como essas nos mostram que não tem como falar do nosso país, da história e cultura afro e afro-brasileiras sem abordar as relações étnico-raciais em sala de aula. Parabéns para os envolvidos e que o trabalho se fortaleça cada vez mais. Let it shine!

  6. Alinnie disse:

    Me fez chorar por vários motivos…O primeiro porque fui Liceísta, aluna da Sirtes e Beth e virei professora de História por isso; o segundo pois fiz parte do grêmio e os alunos do Liceu sempre foram atuantes, fechamos várias vezes a Amaral Peixoto para pedir passe livre; o terceiro é por também ser grevista e entender que este tipo de mobilização é um passo mega importante e que vocês estão fazendo um belíssimo trabalho. Sonho um dia em que mais professores possam refletir este brilho de vocês, pois muitos estão desumanizados. Viva a luta consciência negra e pela nossa humanização!

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