Raça e Racismo

Naturalizamos tanto a categoria “raça” em nosso vocabulário e cotidiano que é difícil muitas vezes entender a negação de muitos pesquisadores das ciências biológicas e humanas a essa categoria.

O aprofundamento das pesquisas sobre as supostas raças humanas mostrou a inviabilidade deste conceito em sua acepção biológica. Não é possível dividirmos os seres humanos relacionando aparência/fenótipo a características morais, intelectuais, culturais. São tantas as possibilidades de combinação de cores, tipos de cabelos, tamanho do crânio, tamanho dos membros etc. entre os grupos humanos que se pode “inventar” qualquer “raça”, pois as combinações são extremamente variadas. Não é à toa que existem categorias de “raças” presentes em uns países mas não em outros. “Latino” é uma categoria “racial” que existe nos EUA mas não no Brasil. O que é considerado negro no Brasil é diferente do que é considerado negro nos EUA. Brasil e EUA construíram suas categorias raciais, neste sentido, de modo distinto. Ou seja, “raça” é uma categoria eminentemente social, construída e inventada por algumas sociedades.

anitamafalti

Se não existem “raças”, então como falar de racismo? Políticas públicas que visam mudar o quadro de racialização e racismo de nossa sociedade, como as cotas voltadas para pessoas pardas/negras, são vistas por muitos como políticas que produzem a racialização e o racismo. Como se reconhecer um problema e buscar combater esse problema fosse a causa da existência do problema.

Apesar de provada a impossibilidade da divisão dos seres humanos em “raças”, as pessoas agem socialmente como se estas existissem, materializando a construção social das “raças”. As pessoas se referem às “raças” e excluem ou incluem pessoas em determinados espaços e posições sociais a partir de suas características físicas. Esse mecanismo que relaciona pessoas com determinadas características físicas a determinadas posições sociais e características morais é o mecanismo da racialização da sociedade. Ou seja, não há “raças” mas há a racialização e há racismo.

danilo gentili racista

Um dos pontos mais dramáticos do debate sobre racismo no Brasil é a relação entre “raça” e classe social. Aí reside o grande argumento dos que defendem a ideia de que vivemos numa “democracia racial”. Ou seja, de que o racismo no Brasil é algo irrelevante e o preconceito contra o pobre que seria o problema fundamental. O preconceito e a exclusão seriam contra o pobre, não contra o negro.

A prática do desenvolvimento brasileiro ao longo do século XX já provou que somente o crescimento econômico não modifica o quadro das “desigualdades raciais”.

O mercado de trabalho por si só não absorve negros e brancos, mesmo com níveis de escolaridade e renda parecidos, da mesma forma. O “mercado” é composto por pessoas que têm seus preconceitos, seus padrões estéticos, suas certezas do que seria uma pessoa ideal para ocupar determinado cargo. Não é à toa que postos de comando são tradicionalmente ocupados por homens brancos (Mais esse e esse links.)

Um comentário comum é o “se uma pessoa negra tiver dinheiro ela não sofrerá preconceito”. Fico pensando no cotidiano: como podemos saber se uma pessoa tem grana ou não? Podemos dizer: pelo tipo de roupa que usa, pelo carro, etc. Ou seja, a pessoa negra de classe média ou rica tem que se preocupar com sua aparência, em sempre deixar evidente que “tem grana”, para não sofrer preconceito? Isso é prova de ausência de racismo? Será que uma pessoa com fenótipo tipicamente nórdico terá que ter esse tipo de preocupação? Será que um negro “mal vestido” é visto da mesma forma que um branco “mal vestido”?

Humor para quem?

Humor para quem?

Ora, se os negros no Brasil se concentram nas camadas mais empobrecidas da população e os diversos ciclos de ascensão social pouco alteraram o quadro de cor das classes sociais, não fica dúvida que existe um filtro na ascensão social. Pobres brancos têm mais chance que pobres negros. É nesse dado que reside o calcanhar de Aquiles da ideia de que o preconceito é contra o pobre e não contra o negro. Se não houvesse “filtro racial” em nossa sociedade, a tendência seria de vermos negros e brancos ascendendo de forma proporcional. E não é isso que ocorre.

democracia racial

É importante observar que a restrição do racismo como simples reflexo de aspectos econômicos esteve presente tanto nos teóricos da “democracia racial” quanto nas interpretações de parte da esquerda que combatia esta ideologia. Florestan Fernandes, por exemplo, acreditava que o desenvolvimento capitalista traria a superação do racismo. Afinal, para um empresário o que importa é comprar e vender, não importa cor de pele, classe social, gênero… Octávio Ianni, por sua vez, considerou o racismo como expressão da competição no mercado de trabalho: mais competição no mercado de trabalho, mais animosidade entre grupos, mais racismo.

Florestan Fernandes dizia que o brasileiro tem “preconceito de ter preconceito”. É preciso abrir nossos corações e mentes e entendermos que o racismo (como o machismo) faz parte da estrutura de nossa sociedade e que todos nós, mais ou menos, crescemos sendo educados, nas “entrelinhas” e nas “linhas”, para reproduzir tais comportamentos. Melhor que negar veementemente o racismo dentro de nós é estarmos atentos e reflexivos para o racismo que guardamos e reproduzimos muitas vezes sem nos apercebermos.

Recentemente o atual técnico da seleção brasileira de futebol, Dunga, falou: “Eu até acho que eu sou afro-descendente de tanto que apanhei e gosto de apanhar.” Passou como uma “declaração polêmica”. Fico imaginando as reações que ocorreriam caso o técnico fizesse um comentário do tipo “Aquele jogador tem tanto gás que parece judeu”. Será que passaria apenas como uma “declaração polêmica”?

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Apesar de muitos brasileiros tentarem vedar o debate com a afirmação de que o racismo no Brasil não é um problema nacional, o debate avança. Aos solavancos, mas avança. Cotas, políticas afirmativas, campanhas de conscientização contra o racismo, pesquisas históricas de experiências negras antes silenciadas, denúncias contra o racismo policial, campanhas de valorização da “beleza negra” etc. compõe o mosaico da luta antirracista na sociedade brasileira.

Sobre Rael

Professor de História, mestre em História Social, peladeiro semanal e meio campo do Boldo Futebol Clube.
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3 respostas para Raça e Racismo

  1. Rael disse:

    Boa noite Telmo,
    valeu pelo comentário e pelos links.
    Concordo absolutamente com você que é preciso identificar o agente da agressão em caso de “conduta discriminatória”.
    Entretanto, acho que a reprodução do racismo no Brasil se dá menos por atitudes explicitas e declaradamente racistas e mais porque muitos simplesmente acham que não há racismo e muitos não identificam alguns pensamentos e ações como sendo racistas. Muitas dessas pessoas nunca terão uma atitude explicitamente racistas, talvez nem sejam racistas, mas reproduzem o racismo. Somos moldados a acreditar, por exemplo, que o cabelo crespo é “ruim”. Esse é um pensamento racista amplamente difundido e reproduzido por muitos (inclusive por nós durante boa parte de nossas vidas), que nem se tocam em como isso é racista! Como o machismo que nós homens reproduzimos mesmo defendendo a luta feminista, entende?
    A solução, nestes casos, não passa em colocar o dedo na cara das pessoas e tachá-las de racistas (socialmente ou juridicamente).
    O link que você mandou acho que fala de atitudes racistas específicas e que obviamente devem ser combatidas juridicamente, o que envolve identificação dos racistas. Sem dúvida que é uma dimensão do problema. Mas acho que a verdadeira luta “de base” deve ser na desconstrução do mito da democracia racial e na conscientização do que é o racismo.

    Abraços!

    • Telmo Kiguel disse:

      Prezado Prof. Rael
      Começo pelo seu “debate avança”.
      Concordo que progride só nas conseqüências da Conduta Discriminatória (CD) dos racistas, dos machistas, dos homofóbicos, etc. O nosso foco em ” Discriminação ” é com a prevenção da CD. Consideramos que a Discriminação é uma questão, basicamente, de Saúde Pública (SP). Também consideramos que as conseqüências relatadas no seu texto são importantes. Em SP é necessário conhecer/identificar/definir o agente causador do sofrimento humano para podermos prevenir. E por isso insistimos que é necessário definir o discriminador e a CD. Só assim poderemos fazer a prevenção. Muito antes que um discriminador seja considerado criminoso pela Justiça ele já se comporta como tal. E em alguns casos, como “…nem se tocam em como isso é racista!”, se a ciência já tivesse feito as definições que achamos necessárias, muito sofrimento poderia ser evitado. Como “…muitos não identificam alguns pensamentos e ações como sendo racistas…”, certamente quando conseguirmos estas definições, os próprios terão mais facilidades de prevenir suas ações.
      O nosso “debate avança” e para entender melhor estas idéias, sugiro:

      http://saudepublicada.sul21.com.br/2014/09/26/educacao-e-criminalizacao-nao-previnem-discriminacao/
      ” Síndrome do Distúrbio Racial: seria um bom diagnóstico para o racista brasileiro? E para o antissemita? ”
      http://saudepublicada.sul21.com.br/2014/05/11/conduta-discriminatoria-tentativa-de-conceituacao-motiva-correspondencia-entre-psiquiatras-2/

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