Só mais um #primeiroassedio num mar de machismo

Como já dizia a sabedoria popular, “O Brasil não é para os fracos.” No mesmo mês de conscientização dos perigos do câncer de mama e da necessidade da mulher se conhecer para evitar essa doença tão tenebrosa, na mesma semana que o ENEM fez questão de lembrar a todos que gênero é importante sim e que violência contra a mulher é um assunto que deve ser abordado como crime, vimos o projeto retrógrado de criminalização da pílula do dia seguinte e a abertura dos portões do inferno (ou das redes sociais) jogando na cara de todos a força da cultura do estupro, além da questão da pedofilia, que correm soltas por aí, mais perto do que imaginamos.

Diante desse cenário, essa semana, o blog Capitalismo em Desencanto vai contribuir com a luta feminista com relatos e artigos sobre como o machismo está mais próximo de todos nós, em muitas formas, disfarçado em muitos rostos conhecidos e simpáticos. O primeiro relato faz parte da campanha #primeiroassedio, promovido pelo blog Think Olga:

Não lembro quantos anos tinha exatamente, quando sofri meu #primeiroassedio, mas lembro que era uma das primeiras vezes que eu saía sozinha de casa, entre a 4a. e a 5a. série. Ou seja, com 11, 12 anos.

Eu tava na esquina da minha rua, andando, como sempre, super distraída. Aí, na direção contrária, passou um cara, com uns 40 anos, e falou alguma coisa comigo. Como eu sou distraída, como eu sou crédula, como eu sempre achava que por ser distraída podia tá com o cadarço desamarrado, a roupa rasgada, esquecido o tênis em casa ou qualquer coisa assim, eu parei. E fui na ingenuidade perguntar pro cara o que ele tinha me dito. Ele também parou. E me disse de novo. Mas ele falava baixo, não dava pra entender. Eu me aproximei mais dele e perguntei de novo “Quê, moço?” Enquanto teve esse diálogo, lembro que eu ficava me analisando, pra saber o que que tinha de errado na minha roupa. Enquanto eu olhava pro meu tênis (Ufa! Ele tava lá! E amarradinho!), ele chegou a boca bem perto do meu ouvido e falou “Você já tá prontinha!” Eu esbugalhei o olho, olhei rapidão pro cara e vi ele se afastando, mas olhando pra trás, pra mim, com cara de tarado. Eu voltei os olhos pro tênis e continuei andando, rápido, assustada, sem entender direito que ele tinha dito. Pronta pra que, meu deus???

Por anos eu não entendi o que ele queria dizer. Mas tem umas coisas que você internaliza primeiro e depois entende, né? Com o tempo, com o aumento da frequência desse tipo de “cantada”, eu passei a entender que o meu lugar não era na rua. Que na rua eu podia ouvir o que não queria. Comecei a ver que eu só tinha o direito de olhar pro chão. Ou pro tênis.

Eu fazia estratégias para evitar lugares mais “perigosos”, como aquele boteco cheio de velho- bêbado-nojento-tarado ou aqueles espaços de convivência nas ruas, como bancos ou mesas de damas ou pontos de táxi, onde um taxista sempre falava pra mim e pra uma amiga “Minha nossa senhora, assim eu passo mal.”. Aprendi que onde os homens se juntam pra bater papo eu não devia ir. Se fosse, eles iam bater papo comigo. Iam me dar “Bom-dia!”, dizer que eu era gostosa, linda, sei lá o que mais. Quando saía de casa, já pensava por onde ia passar pra evitar esses lugares, onde podia atravessar a rua, qual rua era mais vazia, etc.

Mesmo com toda essa estratégia, não tinha jeito. Os homens não são abusados apenas quando estão em bando, eles são abusados quando querem, sozinhos mesmo. Porque eles podem. E, às vezes, em frente a uma farmácia, enquanto passava pra ir na loja de bicicleta do lado, eu ouvia o tal do “Que linda!”

E então eu percebi: o problema não era o lugar por onde eu passava. O problema era eu. Meu corpo. Minha culpa. E aí, achei várias formas de me esconder mais. Naturalmente enfatizava mais minhas gorduras do que minhas curvas. Usava roupas largas, calças, tênis, sem brincos, sem maquiagens, sem vaidades. Não podia. Não podia chamar atenção.

Hoje, enquanto penso nisso tudo, penso no quão absurdo é isso, né? Enquanto eu reprimia minha sexualidade pra todo mundo e pra mim mesma porque queria ser invisível pros velhos-tarados-nojentos das ruas, meus coleguinhas homens, se masturbavam vendo as famosas revistas de mulheres peladas. Eles falavam uns com os outros sobre mulheres e nós, sem dizer nada, estávamos mesmo tentando lidar com o tanto de gente que olhava pra gente sem a gente pedir. Cada gênero lida com o seu corpo e com a sua intimidade de forma tão diferente e desde tão cedo, né? Eles podem. Eu não.

Por muitos anos, durante boa parte da adolescência, meu corpo não foi meu. Meu corpo foi um fardo, uma coisa odiosa, que só me fazia sentir vergonha. Queria ser bonita como as mulheres das capas de revistas, mas acho mesmo que eu queria tá apenas numa revista, sem ver que tinham homens me olhando, falando comigo, apertando os lábios perto de mim. Se era pra isso, queria mesmo era ser feia, ser mais gorda, me esconder mais, ser mais invisível.

Só na faculdade descobri o que é o feminismo, que o meu corpo é meu, que eu que tenho que gostar dele e que os velhos-tarados-bêbados-de-bar-e-nojentos que estão errados, e não eu. Só depois de adulta percebi que o meu decote não é problema social, que se eu saio na rua com uma roupa “chamativa” pode não ser pra todo mundo e pode, até, não ser pra ninguém e ser só um capricho da minha vaidade.

Hoje em dia ando de cabeça erguida na rua, passo até pelos bares dos velhos-tarados-bêbados. Mas não passo pra provocar ou porque preciso ouvir um “elogio”. Passo porque sei que aquela calçada é minha também, que eu tenho o mesmo direito que eles de estarem lá. E porque sei que se eles têm o direito de dizer o que penso de mim “Linda!”, “Gostosa!”, etc, eu também tenho o direito de dizer o que penso deles “Bando de punheteiro!”, “Babaca!”, “Escrotos de merda!”

Isso significa que eu coloco minissaia e arrumo briga na rua? Infelizmente não. Meu feminismo ainda não me empoderou tanto, e vamos combinar que feminismo não te faz a prova de balas. Ainda tenho vergonha do meu corpo em alguns momentos, tenho medo real de levar porrada. Já fui seguida até a casa dos meus pais uma vez que respondi a um cara. E um bêbado, dessa vez nem tão velho assim, que cruzou o meu caminho no terminal rodoviário da Central do Brasil, achou que às 5 horas da manhã, enquanto eu esperava o ônibus pra trabalhar, eu queria muito ouvir da boca dele o quanto eu tava gostosa naquela calça jeans surrada e ribana sem forma da Mercatto. Só não levei porrada porque o fiscal do ponto, de quase 2 metros de altura, ficou entre eu e o bêbado e colocou ele em outro ônibus.

Espero, de verdade, que minha priminha linda e de apenas 3 anos e todas as meninas não passem pelo que eu, e as outras mulheres da nossa idade passaram. Espero que elas não usem minissaia apenas porque não querem e não porque têm a sensação de que não podem. Espero que elas saibam que o mundo pertence a elas tanto quanto pertence aos homens, e nem um grão de areia menos. Eu faço o que posso pra garantir esse mundo melhor pras meninas que ainda não tiveram – e espero que nunca tenham – seu primeiro assédio. Torço para que os pais dos meninos façam o melhor pra que eles não assediem nenhuma mulher, ou menina.

E vamos lutando, de cabeça erguida, olhando pra frente, e nunca mais pro tênis.

Sobre Giovanna Antonaci

Foliã, historiadora, professora e italiana quando CANNOT KEEP CALM.
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5 respostas para Só mais um #primeiroassedio num mar de machismo

  1. Rafael disse:

    Parabéns pelo texto! Vejo que é um grito de desabafo que está preso em muitas gargantas. Gostaria apenas de ver as conexões da luta feminista com o marxismo. Como a alienação do trabalho assalariado se manifesta na objetificação das relações humanas? Como o machismo emerge como fenômeno social? Como a luta por uma sociedade sem classes se contextualiza com a luta feminista?

  2. Lucelia Lacerda disse:

    Parece a minha história, durante muitos anos me escondi atrás de camisas de mangas e bem compridas, usei até camisas masculinas pois escondiam melhor o meu corpo. Sair para trabalhar era um tormento, pois ouvia absurdos que nem tenho coragem de repetir aqui. Para não me alongar em meu comentário, uma vez comentei com meu namorado sobre as piadinhas que ouvia e recebi esta resposta: “você que dá mole, fica sempre sorrindo pra todo mundo”… Como eu queria saber do que sei hoje naquela época… minhas filhas sabem e ensinei desde criança para elas, Obrigada por compartilhar. Bjnhs

    • Giovanna Antonaci disse:

      Ser mulher é perder quase todo dia de 7X1 pro patriarcado, né? Sempre tão perto e sempre tão profundo nas nossas mentes e nos nossos corpos. Vindos até de quem a gente ama…
      Poucas vezes parei pra pensar sobre esse primeiro assédio antes da campanha, mas conforme fui lendo e pensando, consegui também entender como o meu comportamento é pautado nesses 2 minutos e em tantos outros 2 minutos que passaram pela minha vida.
      Se pra nos curarmos de um vício, precisamos antes de tudo assumir que ele existe, nesse caso, comigo, pra me curar de tantas amarradas, pra me fortalecer das que por ventura virão, e pra falar pra eles quem são os culpados, foi bom escrever o relato! E as novas gerações têm mães tão maravilhosas e fortes que eu acredito de verdade que essas meninas vão ser maravilhosas!! Parabéns!!
      Beijos e abraços feministas!!!

  3. Vanessa Oliveira disse:

    Inspirador!

  4. Pingback: Primavera feminista, primavera de luta! | Capitalismo em desencanto

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