Ao observarmos as lutas do nosso presente talvez seja comum que tenhamos percepção um tanto distorcida. Se formos a uma biblioteca ou fizermos uma rápida busca na internet sobre a “luta dos trabalhadores” encontraremos uma grande quantidade de informações sobre greves e manifestações urbanas. Quando pesquisamos as grandes revoluções do passado, como a Francesa ou Russa há, mais uma vez, um forte protagonismo do operariado urbano. Trata-se de um protagonismo inquestionável… Porém, incompleto. O que se evidencia pelo fato de apenas muito recentemente as populações das cidades se equilibrarem em relação às dos campos.
Sendo, ao longo da história mundial, o campesinato a classe mais numerosa, compreender grandes processos de mudança e transformação, no passado e no presente, implica necessariamente uma consideração atenta sobre esse grupo. Contudo, as lutas dos trabalhadores rurais têm sido historicamente secundarizadas, postas à sombra das cidades. Algo que ficou ainda mais evidente a partir dos anos 1990, com a crise do socialismo real – protagonizado por países de maioria camponesa – e por conta das mudanças geradas pela “Revolução” Verde, com a mecanização do campo e expulsão de seus habitantes. Ou seja, vemos um projeto que tenta se impor desde a consolidação de uma sociedade genericamente chamada de burguesa, o qual no alvorecer do século XXI ganha ainda mais força: de um campo como um anexo das cidades, um campo industrial encharcado de agrotóxicos e sem vida.
Nesse contexto adverso, as camponesas e camponeses iniciaram formas de resistência, se organizando em movimentos nacionais e globais que buscam lutar contra as desigualdades no meio rural. Sem sombra de dúvida, o de maior expressão no Brasil, ainda que haja alguns outros, é o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), que defende desde a sua formação em 1984 a reforma agrária e, mais recentemente, luta por uma produção agroecológica.
Como todos experimentamos, 2015 tem sido um ano de muito ataques, mas também de muitas lutas nos espaços urbanos, com a Primavera Feminista, as paralisações em vários órgãos federais como o INCA (Instituto Nacional do Câncer), as greves da educação federal, as ocupações das escolas pelos estudantes de São Paulo, entre outras. Entretanto, como não poderia ser diferente, nos meios rurais tivemos importantes mobilizações e vitórias, nas quais a base camponesa ligada ao MST teve um papel central.
Talvez uma das lutas mais importantes tenham sido as ocupações de latifúndios. A de maior destaque foi a ocupação das terras do pecuarista Eunício Oliveira, senador do PMDB-CE e ex-ministro de comunicações do governo Lula, levadas a cabo por mais de três mil famílias no Estado de Goiás. Em parte desse terreno – que era declaradamente improdutivo – as famílias que ocupavam fizeram plantio de sementes crioulas (não-transgênicas) expondo ao mesmo tempo a importância dos saberes e práticas agrícolas camponesas e demonstrando a capacidade produtiva da agricultura familiar. Além disso, a ocupação conquistou áreas na região para o programa de reforma agrária, algo que tem que ser dura e cotidianamente batalhado, uma vez que durante o primeiro mandato da presidente Dilma pouquíssimas pessoas receberam um lote de terra permanente. Assim, vemos que essa pauta fundamental tem passado longe de um congresso marcadamente ruralista e de um governo bastante alinhado a interesses do agronegócio, vide a presença de Kátia Abreu no Ministério da Agricultura.
Outra ação digna de nota foi a destruição de mudas de eucalipto transgênico da empresa Suzano que estavam em fase de teste realizada por mais de mil mulheres durante a Jornada Nacional de Luta das Mulheres Camponesas. Esse ato, tão propalado como “vandalismo” visava chamar atenção da sociedade como um todo e da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) para os riscos dessa variedade da planta. Ainda que se afirmasse que era segura, essa variedade do eucalipto teria impactos ambientais incríveis uma vez que – em tempos de crise hídrica – consome quantidades imensas de água, além de ser uma ameaça a toda apicultura necessária para manutenção dos ecossistemas e de demandar altas doses de agrotóxico. A atitude desse coletivo de mulheres ensejou e alargou a reflexão mais que necessária sobre o tipo de “progresso” que desejamos ter, levando-nos a questionar se de fato o lucro deve se impor à vida.

Cartaz de chamada para a Jornada em Defesa da Reforma Agrária no Ceará.
Igualmente temos visto nos últimos anos uma aproximação do MST e de outros movimentos sociais dos meios universitários. Esse diálogo é imprescindível, pois a realidade social é pensada a partir da intima relação com os setores populares, e não calcada em etéreas “lacunas” acadêmicas. Dessa forma, a Jornada em Defesa da Reforma Agrária – que em 2015 movimentou dezenas de Instituições de Ensino Superior (IES) – tem feito a Universidade cumprir seu dever social, desenvolvendo pesquisa voltada para os interesses da classe trabalhadora. Desta forma, a Universidade não mais serve de mero laboratório público para o Capital privado ou de legitimadora “científica” das coisas como elas estão.
Nesse sentido, o MST também contribui com um projeto alternativo de Educação, colocando em pauta o papel a ser desempenhado pelo ensino em uma sociedade que deseja transformação. O que pode ser visto na escola construída pelo Movimento – a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) – que neste ano completa uma década de existência. Nela vemos uma proposta de formação para o engajamento social e participação política, algo mais que imperativo em tempos que a Base Nacional Curricular Comum, ao propor uma formação “cidadã”, fragmenta a realidade e os saberes, apresentando ainda um forte viés nacional(ista).
Portanto, como se pode depreender desses breves exemplos, o questionamento da sociedade desigual que vivemos não se resume aos meios urbanos, nem hoje nem nunca. Ao contrário, é possível ver que as gentes do campo, no seu ato mais básico de lutar para continuar a existir, têm construído algumas batalhas fundamentais para que sejamos capazes de superar a perversa lógica existente. As camponesas e camponeses, em torno do MST, ao enfrentarem o regime de propriedade concentrada do latifúndio; colocarem em xeque um conhecimento voltado para o lucro e o ganho individual; e ao formularem uma proposta de ensino dedicada à libertação humana, encarnam um grande projeto anticapitalista de nosso tempo. Logo, por mais que tomem o campesinato como “morto”, um grupo que “tende a desaparecer” essas fortes mobilizações mostram que, como sempre, o campo está vivo… E pulsando com muita luta.