1964: o golpe e a luta de classes

* Texto escrito em colaboração com Ivan Dias Martins.

“Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de corporação e companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre, ou por uma transformação revolucionária, da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em luta.”

Karl Marx e Friedrich Engels, O Manifesto Comunista

Notícia do comício da Central do Brasil em 13/03/1964

Notícia do comício da Central do Brasil em 13/03/1964

25/08/1961: Jânio Quadros renuncia à presidência da república. Os ministros militares tentam impedir a posse do vice-presidente, João Goulart (PTB). Nos dias subsequentes, a Campanha da Legalidade, liderada pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, comanda a reação ao intento golpista. 29/11/1961: Fundação do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), mantido por empresários e altos oficiais militares com o propósito secreto de criar uma atmosfera social favorável à derrubada do governo de João Goulart. 02/04/1962: Assassinato de João Pedro Teixeira, líder da Liga Camponesa de Sapé-PB. 05/07/1962: Diversas categorias de trabalhadores realizam a primeira greve geral nacional, defendendo a instalação de um gabinete ministerial nacionalista. 08/1962: Criação do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), reunindo lideranças sindicais de múltiplas categorias. 12/09/1963: Estouro, em Brasília, da Revolta dos Cabos, Sargentos e Suboficiais do exército, em reação à decisão do Supremo Tribunal Federal de manter a inelegibilidade dos praças ao Legislativo. 13/03/1964: Realização do Comício da Central, em que João Goulart faz um vigoroso pronunciamento em favor das Reformas de Base. 19/03/1964: Realização, em São Paulo, da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em que setores das classes médias e da Igreja Católica demonstram sua oposição ao programa das Reformas de Base. 01/04/1964: Golpe empresarial-militar depõe o presidente João Goulart.

Capa do jornal O Globo em 01/04/1964, exaltando a deposição de Jango como democrática

Capa do jornal O Globo em 01/04/1964, exaltando a deposição de Jango como democrática

Os muitos flashes da história política do Brasil no período que se estende de agosto de 1961 a abril de 1964 nos revelam uma realidade em que a luta de classes mostrava suas feições de forma extremamente franca. Condicionada por uma série de fatores históricos de ordens as mais diversas – dos quais podemos apenas mencionar alguns, como o longo processo de industrialização do país, a crise econômica deflagrada no início dos anos 1960, a incessante alta do custo de vida, o rebaixamento da remuneração dos trabalhadores e a situação internacional em ebulição com a Guerra Fria, da qual a Revolução Cubana constituía o episódio recente mais impactante –, tal luta acelerava-se vertiginosamente. A despeito de seu conhecido final, com o sombrio fechamento representado pelo golpe empresarial-militar de 1o de abril de 1964, nesse texto buscaremos chamar a atenção para a existência de algumas aberturas não realizadas, isto é, outras possibilidades contidas na conjuntura para além da que viria a se efetivar. Com esse propósito, privilegiaremos a análise das opções e ações políticas dos principais agentes sociais envolvidos na peleja daqueles anos.

Durante o duro Governo Dutra, imprensa e militares já se articulavam para afastar o medo de uma transformação social radical.

Durante o duro Governo Dutra, imprensa e militares já se articulavam para afastar o medo de uma transformação social radical.

Esta análise das alternativas políticas colocadas precisa levar em consideração um dos elementos que marcou aquele contexto e atravessou os conflitos que nele se desenvolveram. Este elemento é a mobilização das Forças Armadas como instrumento para uma solução de força para a crise. Tal mobilização não foi um produto espontâneo do acirramento dos conflitos, nem se restringiu ao contexto imediatamente anterior ao golpe contra João Goulart. Pelo contrário, por um longo período, a presença ostensiva dos militares no jogo político se constituiu por meio da articulação de uma estratégia golpista dos setores à direita que faziam oposição à coalização populista que havia elegido Vargas, Juscelino Kubitschek e, como vice, Jango. Em meio a fracassos de derrotar pela via eleitoral a coalização PSD-PTB, a direita fez uso de repetidas tentativas de depor os governos eleitos por meio de golpes militares. Esta estratégia em que se complementaram tentativas legais e extralegais dos setores mais reacionários de assumir a chefia do Estado foi respondida pelas lideranças populistas com a mobilização defensiva do aparato militar. Desse modo, tentativas de golpe e contragolpes foram uma terrível constante na década entre 1954 e 1964, tornando uma questão central da problemática política do período a articulação dos movimentos civis com as Forças Armadas. Questão que ganharia sua forma final na consolidação de uma estratégia golpista puro-sangue por parte da direita, em que as condições para o sucesso da derrubada de regime seriam cuidadosamente preparadas simultaneamente em círculos militares e por organizações da sociedade civil.

O empresário Henning Boilesen (financiador da tortura) e o ministro da ditadura, Delfim Netto

O empresário Henning Boilesen (financiador da tortura) e o ministro da ditadura, Delfim Netto

A partir da articulação e do triunfo dessa estratégia, foi instaurado o mais duradouro período ditatorial de nossa história, em que o aparato estatal e o arcabouço legal do país foram remodelados no sentido de melhor atender às necessidades do empresariado. Tal regime, com um nítido sentido classista, implicava, igualmente, no ativo bloqueio à capacidade de outras classes sociais – notadamente, aquelas do campo subalterno, como o campesinato e o proletariado – se articularem politicamente em prol de suas reivindicações. Ao longo do mandato de João Goulart, ao contrário, tal campo subalterno vivenciou uma profunda ebulição que se traduziu em significativos avanços organizativos e na conquista de diversas demandas, como a instituição do décimo-terceiro salário e a criação do Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural, entre outras, num processo cujas origens remontavam, pelo menos, à primeira metade da década de 1950.

Passeata do CGT no Rio de Janeiro reivindica a garantia do direito de organização dos trabalhadores para além da estrutura sindical corporativa

Passeata do CGT no Rio de Janeiro reivindica a garantia do direito de organização dos trabalhadores para além da estrutura sindical corporativa

Multiplicando as organizações de base – nas fábricas e outros espaços de trabalho, nos bairros de maior concentração da população trabalhadora, nas comunidades campesinas, etc – e buscando articulações entre elas – conforme exemplificam a criação do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) e da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) –, tal movimentação política das classes subalternas mantinha uma relação eivada de tensões e contradições com os grupos organizados (PCB, PTB, PCdoB, POLOP, etc) atuantes em seu interior, bem como com o governo de João Goulart. Afirmar a existência de tais tensões não significa, no entanto, negar o fato de que a aliança entabulada pelo PCB com os setores mais à esquerda do PTB exercesse uma hegemonia no bojo da movimentação política das classes subalternas, fornecendo seus principais quadros dirigentes. Tampouco implica na obliteração de seu principal eixo tático: o direcionamento de suas reivindicações ao governo de Jango, predominando aquelas com o sentido de democratização do regime político vigente e de obtenção de tímidas reformas na estrutura social. Nesse sentido, é fundamental ressaltar a força de reivindicações como a extensão do direito de voto aos analfabetos e a realização de uma reforma agrária, em flagrante contraste com o caráter extremamente marginal das proposições de derrubada revolucionária do regime instituído pela Constituição de 1946 e de abolição da propriedade privada.

Por outro lado, mesmo a confiança alcançada pelas lideranças do bloco PTB-PCB junto aos trabalhadores e a esperança depositada na possibilidade de um giro à esquerda do governo Goulart – realmente efetivado apenas nos seus últimos instantes, quando a oposição de direita já rechaçara todas as tentativas de colaboração classista intentadas pelo presidente – não foram suficientes para eliminar totalmente os momentos de ação mais independente da classe trabalhadora e dos demais componentes do campo subalterno. Desde o processo de redemocratização, quando o apelo de Luiz Carlos Prestes (principal dirigente do PCB) para que os trabalhadores “apertassem os cintos” foi atropelado por um significativo ciclo de greves, até o governo Goulart, tais momentos fizeram-se presentes, empurrando as direções sindicais e partidárias a radicalizarem, em algum nível, sua prática e seu discurso, sob pena de perderem o contato com suas bases. Exemplos disso foram verificados na tentativa frustrada de decretação do estado de sítio por Jango, rechaçada pela mobilização popular, bem como nas greves em favor da restauração do presidencialismo, as quais o presidente tentou, em vão, desmontar antes de sua eclosão.

A virada à esquerda de Goulart: Poderiam as classes subalternas tomar a liderança?

A virada à esquerda de Goulart: Poderiam as classes subalternas tomar a liderança?

Procurar, contrafactualmente, identificar com precisão as consequências advindas de um possível aprofundamento generalizado da radicalidade das lutas dos subalternos – no sentido de, por exemplo, questionar a organização capitalista da sociedade, ou de propor sua derrubada pela via armada – naquela quadra histórica seria, evidentemente, um exercício inócuo. Não obstante, a percepção dos momentos em que efetivamente se ensaiou uma radicalização para além do horizonte projetado e defendido pelas correntes hegemônicas do movimento ajuda a aclarar a natureza da dinâmica da luta de classes, que não se restringe nem pode sempre ser restringida aos patamares e limites pressupostos por suas lideranças. Os conflitos sociais possuem sempre um elemento de incontrolabilidade, que demonstra a capacidade por parte dos seus agentes (no caso, agentes de massa) de agir e deliberarem independentemente, e, assim, conduzirem o conflito a novos patamares. De certa forma, na conjuntura do pré-1964, este fato foi observado mais seriamente pelos setores reacionários da sociedade, que fizeram dessa possibilidade um importante elemento de sua propaganda, caricaturando a esquerda como um todo como essencialmente golpista, pronta a desencadear uma revolução socialista no país. O bloco PTB-PCB, por sua vez, além de programaticamente não ter ido além de reivindicações reformistas amplamente compatíveis com o capitalismo, foi incapaz de articular uma tática política minimamente independente para a classe trabalhadora, que a preparasse para interpor algum tipo de resistência efetiva ao golpe que, cada vez mais, se inscrevia no horizonte de possibilidades daquela conjuntura. Ao contrário, tal bloco optou por manter-se aferrado às opções políticas do próprio governo Goulart, julgando-se plenamente capaz de controlar as possibilidades não condizentes com seu plano de ação, fosse com o dispositivo militar que sufocaria o golpismo de direita, ou com o controle das direções sindicais que manteria as classes subalternas circunscritas ao seu programa.

Manifestação de junho de 2013 no Rio de Janeiro

Manifestação de junho de 2013 no Rio de Janeiro

Evidentemente, constatar a posteriori os equívocos pecebistas e petebistas na leitura dos elementos da conjuntura do pré-1964 não possibilita sua superação, uma vez que o curso da história, ainda que não pré-determinado e prenhe de alternativas, não comporta regressos. Com base nessa constatação, é possível afirmar que tão temerária quanto a soberba demonstrada pelo bloco PTB-PCB naquele momento é o fato de que, hoje, diversos setores e organizações que se pretendem parte da esquerda estão, dentro ou fora de governos, alimentando ilusões quanto ao grau de controle passível de ser exercido sobre um novo ciclo de ativação das mobilizações das classes subalternas que se desenha no país, por meio de greves e manifestações populares, desde 2013. Alienam-se, assim, das possibilidades que se abrem à medida que a luta de classes emerge com maior nitidez e se generaliza espontaneamente. E, não raro, obstaculizam um processo de organização das massas em luta que poderia fazer jus a uma maior radicalização. Tal opção é feita em nome da prudência, apostando em que se pode frear disposições de solução de força por parte dos seus adversários exercendo um freio diligente quanto às ambições de suas próprias bases. Com isso, contudo, assume-se o risco de, uma vez que o conflito desabroche, se ver prisioneiro de sua estratégia e cúmplice com a própria derrota.

Sobre Marco M. Pestana

Doutorando em História pela UFF. Professor do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES). Cinéfilo frustrado, flamenguista e visceralmente socialista.
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