“Vocês não tem mais direito de ficar aqui.”

*Texto escrito em colaboração com Pollyana Labre*

Outra madrugada carioca serviu de palco para a barbárie organizada que dá lastro às paisagens da cidade olímpica. Em cena, a violência do Estado contra a população, desabrigados da Ocupação da TELERJ que resistiam pacificamente e aguardavam a apresentação, pelo poder público, de alguma saída concreta para sua situação. Cassetetes e escudos investidos contra famílias acordadas bruscamente para ver voltados contra elas diferentes braços de execução de uma política que visa subordinar as necessidades mais básicas de existência da população pobre a interesses privados de pequenos mas influentes grupos. Com cuidadoso preparo, a prefeitura do Rio, em aliança com o governo do estado, usou métodos sórdidos para confundir, iludir, dividir e, enfim, dispersar violentamente o grupo que logo ao lado de sua sede (o próprio prédio da Prefeitura) resistia. Com isso reeditou o episódio brutal da desocupação do prédio da TELERJ, confirmando ainda mais uma vez qual é sua estratégia para a habitação na cidade capturada pela bolha imobiliária.

Para lidar com as cada vez mais frequentes reivindicações e ações por uma resolução do enorme déficit de moradias, esta estratégia se mostra com duas faces, que se alternam e por vezes se mascaram uma com a outra: a farsesca e a armada. Ao longo do dia 19/04 ocupantes e apoiadores puderam observar em detalhes os momentos sucessivos da encenação. Uma vez que o espírito de luta de centenas de moradores não pôde ser destruído de um só golpe com o terror da primeira desocupação (a do prédio da Oi/TELERJ) outros artifícios foram postos em movimento, preparando no tempo e no espaço o terreno para que a força pudesse ser novamente empregada como razão última de um processo de negociação que teve no cinismo sua única verdade. Ao longo de uma semana, a prefeitura apresentou sob diversas roupagens a mesma “solução” para as vítimas do despejo: cadastramento individual em algum ou mesmo em nenhum programa específico de habitação popular, sem qualquer perspectiva de prazo ou garantias de concretização. Para a situação imediata, vagas individuais nos odiados abrigos do mal-disfarçado recolhimento forçado da população de rua. O poder de convencimento de tais propostas se mostrava pequeno, mas ao mesmo tempo permitia à prefeitura que objetivos secundários fossem atingidos.

O mais abjeto destes foi o atrelamento do cadastramento à admissão individual de culpa por invasão do prédio da Oi, instrumentalizando o cadastro como forma direta de criminalização dos moradores despejados, agora sendo convocados para depoimentos policiais. Ao mesmo tempo, a prefeitura buscou dividir a negociação entre vários grupos, incitando tensionamentos e o enfraquecimento da coesão dos ocupantes. Mas talvez o principal objetivo da negociação tenha sido o seu próprio prolongamento infrutífero. A cada dia na rua, sem proteção contra um clima especialmente frio, contando somente com a solidariedade de apoiadores para obter comida e agasalhos, as duras condições de vida minavam a persistência dos ocupantes, ocasionando o abandono de muitos que desistiam da luta coletiva e se resignavam a tentar solucionar individualmente suas situações, buscando abrigos ou familiares. E cada dia passado empurrava os resistentes para dentro de um longo feriado que esvaziava as ruas do centro da cidade.

Invisibilizados pelo feriado, também o foram pelo realocamento a que foram pressionados a fazer, da frente do prédio da prefeitura para um prédio situado ao seu lado, distante do alcance das centenas de milhares de pessoas que cotidianamente passavam pela Presidente Vargas e pela estação Cidade Nova do Metrô. Com isso, criou-se o palco adequado para que a farsa se acelerasse rumo ao seu desfecho.

Após mais um dia de longa, repetitiva e vazia negociação, quando os ocupantes atravessavam mais uma noite de frio e ameaças, se deu o primeiro sinal de que tinha chegado o momento em que mudaria o rosto pelo qual o Estado se apresentaria. Às duas da manhã, quando quase a totalidade dos moradores se encontrava dormindo (incluindo as muitas crianças, pelo menos um terço do total de moradores), chegam quatro vans da Secretaria de Desenvolvimento Social. De dentro dela, saem quase exclusivamente homens, todos com físico, sem qualquer exagero, de fisioculturistas. Supostamente, estavam ali para “oferecer” abrigo para aqueles que desejassem sair da rua, acolhimento de tal forma “voluntário” que tem como horário a madrugada de um feriado, feita por pessoas de cargo não esclarecido, com aparência e comportamento de algo entre um policial e um segurança de boate. O mesmo tratamento pelo qual passa todos os dias a população em situação de rua, alvo de um aparelho estruturado para disfarçar recolhimento forçado como assistência social. Rejeitados enfaticamente pelos ocupantes, seu papel entretanto já estava feito, não somente permitindo que o Estado mostrasse pela última vez uma aparência pacífica e social, mas que esta evocasse o terror dos moradores de serem separados de seus filhos. A saída de cena das vans de recolhimento sinalizou, por fim, a entrada explícita da força, na forma da coluna já mobilizada da Guarda Municipal, devidamente equipada com as armaduras, escudos e cassetetes que delineiam de forma inequívoca sua função social.

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Vocês não tem mais o direito de ficar aqui!” – com essa frase, na voz de um comandante sem farda e sem identificação, a remoção não mais se esconde sob um aspecto assistencial. É o comando direto de um órgão de violência que anuncia aos cidadãos a revogação do seu direito de permanência na rua, espaço público por excelência. Enquanto avançava a Guarda Municipal, o Batalhão de Choque da PMERJ se posicionava ao lado, dando apoio, e as vans de recolhimento se mantinham próximas. O grupo principal da Guarda avançou diretamente sobre o frágil cordão de isolamento dos apoiadores, empurrando-os com os escudos e com golpes de cassetete, sem dar tempo sequer para que houvesse uma retirada pacífica dos ocupantes e de seus pertences. O terror avançou madrugada adentro quando, mesmo após terem se retirado da calçada que ocupavam, os ex-moradores da TELERJ e alguns apoiadores foram perseguidos por quilômetros durante o resto da noite, empurrados de rua em rua, sem repouso, sem outro objetivo aparente que ocasionar a dispersão do grupo pela exaustão. Somente nos arredores da Lapa, quase de manhã, a perseguição teve fim, quando os ex-ocupantes (aqueles que se mantiveram unidos ou se reagruparam após os ataques) se abrigaram nos portões da Catedral Metropolitana e uma esperança de socorro pôde ser vislumbrada.

Foto de Paula Kossatz.

Foto de Paula Kossatz.

Apesar de esperançosos numa intervenção da Igreja Católica, o que receberam até agora pouco se diferenciou do que foi visto antes. Mais uma vez as mesmas propostas vazias apresentadas pela prefeitura, contando agora com a intermediação de uma Igreja que de tudo faz para não se posicionar ao lado daqueles que literalmente correram ao seu abrigo. Jogando suspeitas quanto ao movimento, a Igreja faz sombra para a presença permanente dos carros da Guarda Municipal, da PM e do Choque dentro do terreno da Catedral. Resta esclarecer: a Arquidiocese somente autorizou ou requereu ela mesmo essa presença sinistra? Ainda mais sinistras são as figuras que, encapuzadas ou não, se revezam em ameaças explícitas e veladas à vida dos ocupantes, de dia e pela madrugada. telerjAté o fechamento deste texto os ex-moradores do prédio da TELERJ ainda ocupam o estacionamento da Catedral Metropolitana. Até quando, não podemos saber. Com a prefeitura e seus aliados estão todos os meios para fazer valer sua vontade. Os ocupantes só contam com sua tenacidade e com a certeza cada vez mais nítida que errados não são aqueles que enfrentam da forma mais aberta e explícita todas as dificuldades. Errados estão aqueles que buscam a treva mais intensa para esconderem seus intentos e métodos – e vítimas.

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