Não comer carne: a crítica e o ativismo de Cowspiracy

O documentário Cowspiracy reflete sobre a criação de gado, apontando que ela seria a principal razão da destruição ambiental no planeta Terra, ao mesmo tempo em que procura entender por que a pecuária normalmente não é apontada como a principal vilã nos debates sobre o tema. O filme foi produzido de forma independente em 2014 e ganhou fôlego com o interesse de Leonardo DiCaprio, que se tornou seu produtor executivo e editor. Cowspiracy estreou há algumas semanas no Netflix, ganhando certa projeção por sua capacidade de levantar questões sobre ética e ativismo.

A ideia para o filme surgiu com o estranhamento vivido pelo co-diretor, o californiano Kip Andersen, ao constatar, a partir de um relatório da ONU, que a criação de gado era a principal responsável pelo efeito estufa, já que o metano que esses animais produzem é 86 vezes mais destrutivo que o dióxido de carbono proveniente dos meios de transporte. O CO2 também é pouco perto do óxido nitroso, que tem 65% de sua existência mundial gerada pela criação dos bovinos, e é 296 vezes mais influente para o aquecimento. Gado é, portanto, mais poluente que todos os carros, aviões e navios juntos e, segundo estudo do Banco Mundial, é responsável por 51% da mudança climática causada pelo homem.

O gado não é apenas o principal vilão do aquecimento global por causa dos seus peidos de metano, mas também por provocar uma redução enorme de recursos naturais: a ele são destinados 30% da água consumida no mundo (nos EUA, esse número é de 55%), 45% da terra, além de seus dejetos estarem diretamente ligados a destruições de ecossistemas, inclusive nos oceanos. Ao redor do mundo, são 70 bilhões de animais em fazendas com uma necessidade de consumo de água e comida muito maior que a dos humanos: 50% dos grãos e dos legumes produzidos no planeta são destinados à indústria pecuária. Boa parte do filme é para mostrar com muita perplexidade esses e outros dados como o de que, para se fazer um mero hamburguer, são necessários 2500 litros de água. Apesar de ser difícil para um leigo avaliar a qualidade das informações, as referências citadas são extensas e estão detalhadas também no site do filme.

Algo mais instigante começa a seguir. Andersen se espantou então que essas não fossem as informações principais das organizações ambientais e de todo o debate sobre o desastre ecológico mundial, para quem a criação de animais era quase irrelevante diante do uso de combustíveis fósseis. O documentarista visitou vários sites que eram importantes referências para a preservação ambiental, notando o enorme descaso para com o problema da indústria pecuária. Fez várias entrevistas em que constrangia ativistas e profissionais com sua falta de conhecimento sobre a nocividade da criação de gado e pressionou organizações, em especial o Greenpeace, para que falassem sobre o assunto. Cowspiracy chega então à conclusão de que, por serem também empresas, essas organizações ambientais evitam parecer anti-carne, já que isso afastaria colaboradores, contribuintes e ativistas. O discurso de culpabilização sobre os combustíveis fósseis associado a sacrifícios cotidianos bem mais fáceis que não comer carne (como separar o lixo, tomar banhos rápidos) seria mais cômodo e atraente e, portanto, mais adequado para a lógica de funcionamento desse ativismo ambiental hegemônico que precisa de fontes de financiamento e boa imagem comercial. É assim que Cowspiracy explica por que a indústria pecuária não é apontada como a principal vilã e ofuscada por outros temas1.

O argumento faz sentido e é uma das grandes contribuições do filme. Se ele estiver correto, chegamos a uma questão (entre tantas outras interessantes) que merece ser sublinhada: em uma forma de pensar bastante influente em nossa sociedade, aparece muito prontamente uma pressão moral individual que está em conexão com o que se julga a causa de um problema. Ou seja, se o problema é a produção de carne, então não se deve comer carne. Se alguém que fala contra a indústria da carne come carne, então é um hipócrita. Essa lógica, percebida pelo ativismo hegemônico para camuflar o inconveniente que é a indústria pecuária, é também a de Andersen que está em uma saga pela boa consciência e pelo comportamento correto. O filme promove então uma solução que julga ser capaz não só de estabelecer uma paz interior, como também de mudar o mundo: sejamos veganos.

Essa saída é calcada em uma visão de mundo liberal, principalmente porque entende que a produção de carne se dá por uma questão de demanda. Crê que a aversão à carne por parte dos indivíduos seria então o caminho pelo qual a gigantesca estrutura mundial de produção de gado poderia ser detida e o colapso ambiental, evitado. O limite desta reflexão está em desconsiderar a causalidade inversa, isto é, o papel desempenhado pelo próprio gigantismo da produção de carne no seu largo consumo.

Essa opção ativista do documentarista em centrar uma solução para a crise na mudança de hábito individual tem um significado político que repercute imediatamente no próprio desenrolar do documentário. Em certo momento, Cowspiracy mostra que a indústria da carne é muito provavelmente financiadora de organizações ambientais que tem seu foco nos combustíveis fósseis; que o FBI considera a militância ambiental como a principal ameaça de terrorismo doméstico, contra a qual articula um grande sistema de vigilância; que a legislação em vigor calcada no Patriot Act é capaz de suspender a liberdade de expressão, inclusive com prisão para aqueles que se colocam contra a indústria de alimentos (ou seja, criticar o pecuarismo é um crime contra a segurança nacional ainda que se esteja falando a verdade); que dados sobre a poluição causada por empresas de agricultura são protegidos sob diversas alegações; que o lobby pecuarista junto ao Estado é grande; e que o próprio filme teve seu patrocínio suspenso por conta do tema “controverso”. Todas essas questões que revelam a estrutura de poder que sustenta a produção pecuária deveriam ser o centro do filme em seu esforço combativo, justamente por ser o ponto capaz de explicar como uma atividade industrial tão perigosa e cruel se mantém e se amplia apocalipticamente. Mas na narrativa de Andersen, elas não ocupam mais de 8 minutos e são um dado que, depois de exposto, é abandonado para que se investigue e aprenda qual deve ser o estilo de vida mais correto: o quanto de carne seria sustentável comer (quase nada), o funcionamento da agricultura de subsistência, a não-necessidade de aditivos animais na produção agrícola, e finalmente as vantagens da dieta vegana.

O ponto deste texto não é a crítica ao veganismo em si. Em realidade, é muito positivo que se amplie uma sensibilidade que impulsione eticamente os indivíduos a mudar de hábitos. A crítica a essa mudança individual, realizada amplamente também pela esquerda, é mesmo politicamente deletéria quando se reduz a uma reatividade não propositiva e somadora. O veganismo pode ser uma justa reação contra a alienação a que somos submetidos mesmo em relação a uma atividade tão primária quanto comer, e uma resistência contra uma organização social que nos põe em encruzilhadas éticas. O ponto é que há um problema se o veganismo oblitera a compreensão dessa estrutura e com isso restringe a capacidade de agência coletiva transformadora. O consumo de carne é determinado pela força econômica e política de sua indústria, o que inclui, como aprendemos, a repressão e o medo e uma oferta de alimento apenas escapável para uma classe média que, não sem esforço e um tanto de dinheiro, consegue recorrer à comida preparada alternativamente. Uma saída para o problema que restrinja seu fundamento ao voluntarismo de indivíduos não vai fazer frente ao gigante complexo de forças que conforma o que somos e que tem sua lógica de funcionamento no capital. É uma pena que, pedagogicamente, a principal intenção do filme seja criar um apelo moral sobre o consumidor.

1 Cowspiracy também nos apresenta bisonhos casos em que entidades ativistas de proteção ambiental promovem a destruição ecológica.

Sobre Wesley Carvalho

Professor e historiador.
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Uma resposta para Não comer carne: a crítica e o ativismo de Cowspiracy

  1. Diogo Pires Dias disse:

    O problema do veganismo é que ele não é a única resposta para os problemas que aponta. Mesmo se, em uma situação hipotética, parássemos todos de consumir carne e lacticínios ainda teríamos uma população enorme de vacas que seriam simplesmente abatidas e descartadas a não ser que se fizesse um último “grande churrasco” da humanidade. Outra opção sustentável para obtenção de proteínas, também recomendada pela ONU, é o consumo de insetos que por sua vez não entram em uma dieta vegana, mas já existe em algumas partes do mundo. Isso sem mencionar culturas pastoris tradicionais em algumas partes do mundo que já estão integradas ao ecossistema da região…
    O combate a indústria agro-pecuária não deve se reduzir a uma questão moral sobre o “abate de animais”. Até porque esse apelo emocional não atinge algumas culturas “recém-urbanizadas” como os próprios chineses. A estratégia pode até funcionar com o homem urbano ocidental já bastante alienado da processo de produção de alimentos…
    É como se tivéssemos um problema ecológico e material gravíssimo e tentássemos solucionar mudando de religião…

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