#primeiroassedio: quando a violência vem de quem você confiava

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Uma das coisas que mais me impressiona na minha experiência como mulher é que eu não me lembro exatamente quando tive consciência de que era uma presa. A sensação que tenho é que desde sempre tenho clareza de ser um alvo. Por isso, quando lançada a campanha #primeiroassedio, diante do episódio deplorável no qual a menina Valentina vem sendo objetificada e vítima de todo tipo de nojeira que o patriarcado nos oferece (sem que a gente peça, é bom sempre ressaltar), fiquei muito estarrecida com o fato de que não me lembro quando sofri o meu primeiro assédio. Mas uma das coisas que mais me marcou recentemente é que não só o primeiro assédio pode internalizar na gente o medo. Mas também outros tipos de violência acontecem sem que a gente consiga medir a gravidade do que sofreu.

Recentemente fui confrontada por acaso com um experiência que passei e mesmo sendo militante feminista tive muita dificuldade de reconhecer meu lugar de vítima, e de dar o nome certo para o que tinha sofrido. Em abril desse ano fiquei impactada com quando uma aluna com quem conversava muito, veio se desculpar por ter faltado algumas aulas seguidas por estar muito abalada emocionalmente. O motivo do abalo: ela tinha sido vítima de um estupro “doméstico” (chamarei assim o casos – inúmeros – de estupros que são cometidos por parceiros da vítima, em ambiente íntimo). O rapaz, com quem ela já saía algumas vezes, não entendeu o não e forçou a relação sexual. Se vendo indefesa ela cedeu, apesar de repetidas vezes ter negado. Apesar de ter deixado claro que não queria. Quando ouvi seu relato fragilizado, e a dificuldade de chamar o que tinha passado de estupro, me veio a iluminação: em novembro no último ano passei por situação semelhante, com desfecho um pouco diferente, e me sentindo suja, invadida e sem voz, não consegui por muitos meses dar o nome verdadeiro para o que sofri.
Logo depois de terminar um casamento de seis anos, comecei a sair com um amigo. Um amigo nessa hora me parecia algo confortável. Ficamos por algumas semanas e os primeiro sinais de que “não” era de difícil entendimento começaram a aparecer, primeiro sob forma de expectativas de um relacionamento estável que eu não queria assumir, mas era “forçado”. Quando questionado, isso se apresentava como excesso de paixão, algo que não é feito por mal. Um dia, numa visita a minha casa, começou a tentativa de sexo. O primeiro “não” foi dito e não ouvido. O segundo igualmente. As mãos tentaram ser contidas sem sucesso. O terceiro, o quarto, o quinto. Já em cima de mim, por sorte e com uma força de quem teme estupros desde que se entende por gente, eu vociferei: você não está entendendo que não vai rolar? O choque veio seguido do ataque: “vou embora”. “A porta da rua é serventia da casa”, foi a resposta. No dia seguinte nos cruzamos e o predador falou comigo como se nada acontecesse, achando bizarro o fato de eu estar “estranha”. O mero toque no ombro de me arrepiou de ódio. Desde então rompeu-se a relação, não sem maiores dores: escândalos públicos, e eu era a destruidora de corações. A tentativa de reconquista continuou, de maneira invasiva, torpe e egocêntrica.
Durante muitos meses me questionei: por que permiti que ele entrasse? por que fiquei com ele? E fui questionada: o que você fez para que ele sumisse? O que você fez para ele agir dessa forma?
E então, ao ouvir o relato da minha aluna fui ao chão desmoronada: com todo estudo teórico, com toda militância política, o patriarcado me puxou o tapete e eu sequer percebi. Me senti duplamente arrasada, culpada como militante por não ter percebido e machucada pela agressão…  Desde o ocorrido até essa conversa com ela, escondi a história de todos, passei por essa dor sozinha. Eu assumi que a culpa era minha, por ter ficado com ele, por tê-lo deixado entrar, por continuar com ele sabendo que ele estava apaixonado e eu não. Com o tempo fui jogando aquilo para debaixo do tapete, fingia que nada tinha acontecido. Até meses depois conseguir identificar que, assim como eu consegui batizar o que ela sofreu com o nome correto, era preciso assumir que eu fui vítima de uma tentativa. Por sorte consegui tirar forças para dizer o não definitivo, mas quantas mulheres não conseguem fazê-lo pelos mais diversos motivos? E depois não têm qualquer tipo de apoio de seu círculo social, porque afinal, “a culpa é dela”. Mas não, não é. Essa responsabilidade não vai mais cair na nossa conta.
Quando manifestamos claramente nossa vontade e você – amigo, ficante, peguete, boymagia, namorado, noivo, marido – não a respeita, então sim, você está cometendo uma violência sexual. Um estupro. Não importa quando vezes vocês já transaram antes, não importa o grau de relação que tenham. Nada justifica a invasão do corpo feminino como se ele servisse unicamente para satisfazer sua vontade. É absurdo, indignante, que qualquer homem use sua posição de proximidade com uma mulher para submetê-la dessa forma. E é ainda mais absurdo que socialmente isso não seja um escândalo, que isso passe despercebido, como se houvesse algum direito dele sobre nosso corpo.
Espero que esse relato empodere outras mulheres, assim como o da minha aluna me afetou. Desde então ganhei mais alguns níveis de desconfiança com relação aos homens. A marca e o nojo de ter sofrido isso por parte de alguém em quem confiei são inapagáveis. Mas ganhei também mais força para identificar onde o machismo se esconde, e mais força para gritar: não passarão!

“Silêncio nenhum vai te proteger de absolutamente nada”
(https://www.youtube.com/watch?v=0Maw7ibFhls)

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Uma resposta para #primeiroassedio: quando a violência vem de quem você confiava

  1. BNick disse:

    Caraca, passei pela mesmíssima situação! Não tinha chamado de machismo, mas pelo menos vi claramente que ele tinha sido um imbecil. Foi logo depois do pior término da minha vida, eu tava muito desorientada e sem chão. E eu tb caí na velhíssima história do ombro amigo =/
    Me sinto burra, mas me perdoo. Ele eu não perdoo não. Muito egocêntrico tosco…

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