Autora: Natalia Conti, militante do PSTU/RJ, constrói o Movimento Mulheres em Luta (MML-CSP Conlutas) e é mestranda em Sociologia na Universidade Federal Fluminense (UFF)
Fazer um balanço dos governos do PT sobre a questão das mulheres é inevitavelmente ter que olhar para boa parte dos projetos que o Estado elabora. Diferente de analisar as políticas específicas para o setor, podemos a partir da leitura das políticas de saúde, educação, segurança pública e emprego, por exemplo, identificar aquele lugar concebido pelo governo para as mulheres brasileiras, sobretudo as mulheres trabalhadoras. Imediatamente após a apresentação de políticas de austeridade que restringem o seguro-desemprego, atacam as pensões, o abono salarial e o auxílio-doença, apontamos que não é possível ainda fazer um balanço definitivo a respeito, visto que no cenário de crise econômica os ataques tendem a se aprofundar e comprometer as poucas garantias que as mulheres têm atualmente.
Outro aspecto importante a ser levado em conta, antes que entremos propriamente no debate dos projetos dos governos Lula e Dilma, é o fato de que a eleição da primeira mulher à presidência do país, seguido de dois mandatos do primeiro (ex-) operário eleito ao mesmo cargo, reforça as expectativas existentes na possibilidade de transformação da realidade política e social por parte da população, que vê ainda, de alguma maneira, o PT como um partido diferente dos partidos burgueses tradicionais. Há um nó nessa questão, como poderemos discutir mais adiante, que implica na identificação das mulheres brasileiras com esta governante, ainda que a sua eleição, simplesmente pelo fato de ser mulher, não implique no favorecimento de políticas que coloquem em xeque a realidade de violência e precariedade vivida.
Qual é o projeto do PT para as mulheres trabalhadoras?
Desde a eleição de Lula, em 2003, o PT reivindica como um de seus bastiões políticos a intervenção que favorece as mulheres. O diagnóstico de que elas são as principais vítimas de situações de vulnerabilidade em relação à violência doméstica, pobreza, desemprego, falta de atendimento de saúde e de moradia emplacou o projeto do Bolsa Família como o carro-chefe deste governo. Nas somas e dividendos dos projetos aprovados (aplicados?), podemos identificar de que forma eles estão servindo de fato para avançar na superação de índices terríveis que apontam a qualidade de vida da população feminina no país.
O programa Bolsa Família surge como um projeto que visa a garantia de frequência das crianças à escola e a possibilidade de condições melhores de vida para famílias que vivem em situação miserável. Há dez anos, o programa repassa às famílias um valor estimado de R$70,00 por cada filho matriculado na escola, e quase a totalidade (92%) dos titulares dos cartões do programa são mulheres. A controvérsia que gerou polêmicas desde a sua criação reside no fato de que as mulheres vítimas de condições sociais extremamente precárias terão a garantia de um benefício caso mantenham os filhos na escola. As condições de moradia, saúde, pleno emprego – e principalmente este último – são negados a elas como direito.
Dizer que é impossível discutir as políticas específicas sem perpassar outros campos e ministérios, significa considerar que entre 2011 e 2012, por exemplo, o governo destina R$35 milhões para o Bolsa Família enquanto os gastos com a dívida pública são de R$1,461 trilhão, cerca de 40% do PIB. Outro problema ligado ao programa diz respeito à concepção que responsabiliza a mulher pelo cuidado com as crianças e pela garantia de que estas sejam sustentadas com R$70,00 por cada uma. Atribuir à mulher e responsabilizá-la pelo papel de reproduzir o trabalho doméstico e o cuidado com os filhos é parte desta concepção que o governo defende como projeto.
Outro programa que gerou polêmicas e que também favorece a ideia da mulher como mãe e provedora do lar é o Rede Cegonha. Em detrimento de uma política de saúde global da mulher, o governo favorece uma ideia de saúde da mãe. Esta foi uma das principais bandeiras da campanha ao primeiro mandato da presidente Dilma, tendo por objetivo reduzir a mortalidade materna – que figura entre 64 para 100 mil parturientes, que dá ao Brasil o lugar de 79º país em número de mortes de mães. A polêmica que fez a portaria que formalizou o projeto cair consistia no questionamento sobre o controle do Estado em relação à gravidez das mulheres e da possibilidade de aborto, em razão da necessidade do cadastro no Sisprenatal. O controle contribuiria para a criminalização das mulheres que optassem pelo aborto – quarta principal causa de morte entre gestantes no Brasil.
Tivemos durante o governo Lula 100 mil mulheres indiciadas por abortos clandestinos, realidade que reflete uma questão latente da saúde pública no país. Quando a questão é o direito ao aborto, não podemos deixar de citar o acordo Brasil-Vaticano da era Lula e a Carta aberta ao povo de Deus, do primeiro mandato de Dilma, que reafirmam a relação amistosa do governo com a bancada religiosa e com as exigências das igrejas em relação a políticas como união estável entre LGBTs e a questão do aborto. Além dos altos índices de mortalidade e na lenta redução desse quadro, há ainda uma diferença gritante entre o número de mortes de mulheres mães negras e brancas, sendo que o aumento de mortes entre as primeiras é de 30,4% e a redução entre as segundas é de 19%[1].
Enfrentar o problema da diminuição da mortalidade envolve não só criar condições adequadas ao atendimento no SUS e no acompanhamento do pré-natal, mas descriminalizar e legalizar o aborto, garantindo a sua realização com segurança em hospitais públicos.
Os cortes bilionários no orçamento da educação não passam despercebidos às mulheres trabalhadoras. A situação das creches é alarmante; de 1.500 unidades prometidas pela presidente no início de seu primeiro mandato, cerca de 610 foram entregues até o final de 2013. O projeto Brasil Carinhoso, que atende as famílias mais miseráveis acompanhadas pelo Bolsa Família, que prevê distribuição de medicamentos, acompanhamento de saúde e criação de vagas em creches, vive a contradição de ter 56 dos municípios atendidos sem nenhuma creche pública, que resulta no atendimento de apenas 15% das crianças favorecidas pelo Bolsa família pela Educação Infantil pública.
O problema da violência contra a mulher
No país onde uma mulher é estuprada a cada dez segundos, e onde as taxas de homicídios femininos crescem ano a ano, vivenciamos uma política insuficiente e desmontada de combate à violência contra as mulheres. A Lei Maria da Penha, embora conquistada com muita luta, apresenta graves limites e não possui verba e estrutura associadas suficientes para responder ao problema.
O aumento do número de assassinatos de mulheres e do número de casos de violência doméstica coincide com um desmonte do aparato que deveria assistir as mulheres vítimas desta violência. A Lei Maria da Penha atende apenas mulheres vítimas de violência doméstica/familiar – deixando de fora situações de violência com outros possíveis agressores fora deste ambiente. Ainda que na letra da lei as comunidades lésbica, bi, trans e travesti estejam contempladas, é insuficiente o trato da questão no espaço doméstico/familiar, visto que estas são extremamente vulneráveis a crimes de ódio e à violência sexual em outros espaços.
As mulheres negras, assim como em relação às mortes por gravidez, também são as principais atingidas pelos homicídios. Entre 2003 e 2008 houve uma diminuição de 11,61% de homicídios de mulheres brancas, enquanto entre mulheres negras há o aumento de 20,86%[2].
Alguns dados são úteis para evidenciar a situação das instituições responsáveis pelo combate à violência contra as mulheres[3]:
Tipo de instituição | Quantidade no país |
Centros de Referência/Núcleos integrados de Atendimento à Mulher: atenção social, psicológica e orientação jurídica | 226 |
Serviço de Saúde Especializado para o Atendimento dos Casos de Violência contra a mulher | 249 |
Casas Abrigo/Outros serviços de abrigamento | 77 |
Delegacias especializadas/Postos/Núcleo/Seções de atendimento à Mulher em Delegacias comuns | 497 |
Juizados Especializados e Varas adaptadas | 100 |
Defensorias Especializadas | 43 |
Promotorias/Núcleos de Gênero no Ministério Público | 53 |
Serviços de Responsabilização e Educação do Agressor | 15 |
O que os números têm a nos dizer é que as mulheres violentadas, na maioria das vezes, não têm onde ser atendidas. Que existem com frequência denúncias de mulheres que foram ridicularizadas, culpabilizadas e questionadas sobre a sua agressão em delegacias comuns e de mulheres quando foram prestar queixa contra os agressores. Infelizmente com os cortes em razão da crise econômica a situação não deve melhorar até o final do segundo mandato do governo Dilma.
A situação econômica, carestia de vida e emprego
Outro dado alarmante do governo do PT em relação às mulheres diz respeito ao rendimento salarial e emprego. A desigualdade no pagamento dos salários entre homens e mulheres segue existindo, variando entre 25 a 40% dependendo da região do país. Também a taxa de maior desemprego atinge as mulheres e os negros, sendo estes a metade dos desempregados há mais de um ano. Ainda que o governo anuncie o crescimento dos empregos, o que vemos é que isso se dá centralmente em setores precarizados e com salários baixos, em detrimento do fechamento de postos de trabalhos com melhores garantias e direitos e salários melhores.
O pronunciamento de Dilma Rousseff para o dia Internacional da Mulher de 2013 aponta como presente às mulheres, políticas que já estão todas questionadas pela crise econômica e as medidas de austeridade apresentadas no início de 2015. Veja o vídeo:
A carestia de vida, a crise da água e da energia que afeta diversas regiões do país, o aumento dos juros são pontos que invariavelmente tornam a vida das mulheres mais penosa, e colocando abaixo a farsa que o governo do PT tentou construir de “nova classe média”. A ocupação do cargo presidencial por uma mulher, bem como a atribuição de ministérios e secretarias a outras mulheres, neste momento, vai gritar o antagonismo com a vida da mulher comum, trabalhadora brasileira. Irá mostrar que não é suficiente que seja mulher uma governante para que as mulheres de um país vivam bem e com dignidade.
Poderíamos abordar outras tantas problemáticas para pensar o tema, que com certeza está em aberto e deve ser pauta constante dos movimentos sociais, partidos políticos de esquerda e movimentos feministas do Brasil. Não estando diante de um problema de gestão, mas de projetos antagônicos em disputa, é necessário ainda avançar na compreensão dos limites dos espaços institucionais para a superação das contradições do machismo, ainda que as exigências aos governos devam ser feitas.
As jornadas de junho de 2013 nos revelam os limites do governo e a insatisfação diante de tantos ataques e descaso com a população trabalhadora. Por outro lado, o debate eleitoral e o resultado das eleições revelam o limite de Junho. Tomar em nossas mãos a construção de um projeto com independência de classe que tenha em vista não só a superação do machismo, bem como do racismo, lesbo/homo/trans/travestifobia e da sociedade de classes está na ordem do dia.
[1] Dados do DIEESE – Anuário das mulheres brasileiras 2011 (p.217). Elaboração: Ilaese.
[2] Dados do SIM/SVS/MS Elaboração: Julio Jacobo Waiselfisz e CFEMEA.
[3] Dados da Secretaria de Política para as Mulheres (SPM), Elaboração: ILAESE
Referências
Na gestão petista, aumentou a opressão sobre mulheres, negros e homossexuais. Colaboração: Ana Pagu, Elder Sano “Folha”, Hertz Dias e Marília Macedo. Em:Os motivos da revolta popular: Um balanço crítico do governo do PT – Daniel Romero, Érika Andreassy e Nazareno Godeiro. ILAESE
Mulheres trabalhadoras: nada a comemorar nos governos do PT – Ana Pagu
Compromisso com as mulheres – Plataforma de governo de Lula
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