Qual a implicação da tolerância?

Cars are cars/ All over the world/
But people are strangers/ They change with the curve
(versos da música “Cars are Cars” de Paul Simon)
Agradecimento para Renato Silva, Mariana Bedran, Fábio Frizzo e Ivan Martins por críticas e comentários

A ideia de “tolerar” pode muitas vezes carregar uma conotação paternalista, onde a tolerância pode ser assaz bem entendida como uma maioria que decide suportar certos grupos minoritários (religiosos, étnicos, ou quaisquer outros), tal qual um fardo, a despeito das práticas recrimináveis ou excêntricas deles. Portanto, seria necessário em prol de um verdadeiro igualitarismo transformar tolerância em aceitação, respeito ou reciprocidade, ou seja em uma relação que não é hierárquica. Essa perspectiva encontra eco em nomes importantes da filosofia política contemporânea, como Rainer Foster que procura entender a ideia de tolerância como respeito (busca pela tolerância racional e equitativa).

Embora no embate cotidiano (inclusive jurídico) essa seja uma linha de reflexão bastante importante, a proposta do presente texto é antes refletir a respeito de possíveis limites de uma luta cuja a bandeira seja a “tolerância”.

Para o pensador Slavoj Žižek a questão da tolerância é um produto ideológico do multiculturalismo, que, para ele, baseia-se na tese de que vivemos numa sociedade pós-ideológica. Essa ideia seria causada pelo fracasso de soluções políticas diretas para problemas contemporâneos (estado de bem-estar social, o socialismo real, etc). Já procurei expor a posição do autor a respeito do tema da ideologia nesse texto onde podemos ver que Žižek rejeita essa noção de pós-ideologia.

Vale a pena ressaltar que ao apresentar uma crítica para o multiculturalismo (e a questão da tolerância), Žižek parece ter em mente especialmente a política liberal dos EUA e Europa. Por isso a crítica a uma tendência do “projeto político liberal” de naturalizar a cultura, como se fosse algo dado.

Para o pensador o “choque de civilizações” (proposto por Samuel Huntington) seria a melhor formulação dentro dessa lógica de “culturalização” da política. O “choque de civilizações” e o “fim da história” (de Francis Fukuyama), onde não há mais espaço para mais progressos conceituais mas apenas desafios empíricos, seriam inclusive complementares. O choque de civilizações seria a política possível numa história acabada.

Tradução: "AVISO - Intolerância não será tolerada"

Tradução: “AVISO – Intolerância não será tolerada”

A abordagem liberal multiculturalista teria como uma pressuposição básica a separação das pessoas entre aquelas que são determinadas pelo modo de vida em que nasceram e foram criadas e aquelas que “usufruem” sua cultura, que se elevam acima dela e escolhem sua cultura. Segundo o filósofo, um paradoxo dessa política liberal é que é a própria cultura a produtora de barbárie ao ser uma cultura particular que torna os indivíduos intolerantes com outras culturas. Isso leva a um outro paradoxo que é o fato de que sendo as culturas particulares, são os indivíduos que são universais, tendo em vista a capacidade que possuem de se elevar acima de qualquer cultura particular. Como os indivíduos não tem como deixarem de ser, em alguma medida, “particularizados”, a única forma de resolver esse impasse é com a separação entre público e privado. No liberalismo, cultura é portanto do âmbito privado (estilo de vida e crenças) e não mais uma rede pública de normas e regras.

A conclusão possível, já que a cultura é a fonte para o barbarismo e a intolerância, é então que para superarmos a intolerância e a violência devemos extrair a essência de nosso ser da cultura, devemos ser kulturlos (sem cultura). Nesse ponto o filósofo esloveno cita a cientista política Wendy Brown como alguém que problematiza essa noção liberal de multiplicidade de níveis.

Brown procura demonstrar que 1) a noção liberal não é verdadeiramente universal, 2) liberdade de escolha é relativa, e 3) o impasse existente de tolerar o intolerante. Na primeira afirmação é lembrado que em nossa sociedade há uma divisão do trabalho por gênero que ainda perpetua uma dominação masculina, além de lembrar que liberdade individual acima de laços de solidariedade comunitários é uma característica da cultura capitalista ocidental. A segunda afirmação se refere ao fato de que apesar de demonstrarmos indignação quando indivíduos de outras sociedades não recebem direito de escolha nós naturalizamos certas práticas em nossa sociedade, como as mulheres que se submetam a plásticas para continuarem “competitivas” no mercado sexual. E a terceira se refere a atos de intolerância para com práticas de outras culturas (como quando algumas feministas estadunidenses apoiaram a invasão no Afeganistão e Iraque para ajudar as mulheres oprimidas desses países).

"Tolerantes, desde que você concorde totalmente com eles". Um paradoxo da posição tolerante liberal?

“Tolerantes, desde que você concorde totalmente com eles”. Um paradoxo da posição tolerante liberal?

Lidar com o nazismo era um caso de tolerância? (Imagem da foto: Captain America Comics Nº 1 de 1941

Lidar com o nazismo era um caso de tolerância? (Imagem da foto: Captain America Comics Nº 1 de 1941

Žižek problematiza a crítica de Brown, começando por esse relativismo sobre “tolerar o intolerante”. Afinal de contas como seria possível a tolerância em casos como o nazismo? Ao contrário, para o esloveno ser tolerante para com o intolerante é apoiar a intolerância.  Outra questão é que Brown ao criticar a postura liberal como apenas mais um discurso eurocêntrico não percebe que ela mesma nunca chega a sair dessa cultura, que a permite fazer esse tipo de crítica.

Além do mais, Brown parece querer insistir numa ideia de que o liberalismo é um falso universal que esconde seus traços particulares. Mas Žižek defende que há uma universalidade efetiva; o próprio liberalismo político, nascido na Europa como resposta para os conflitos religiosos, seria um universal surgido de uma situação particular, uma configuração política criada para permitir que pessoas de confissões religiosas distintas pudessem não só viver tolerando umas às outras mas com respeito mútuo.

O capitalismo, ainda que nascido de uma situação particular, é uma forma universal não só em-si-mesma como para-si-mesma, impondo-se e corroendo qualquer outra forma de cultura, tradição e estilo de vida. O capitalismo é efetivamente universal, sem fincar raízes em nenhuma cultura particular do mundo. Todas as formas de opressão estão portanto condicionadas pelo universal realmente existente.

A Universalidade não é então um sentimento de que acima de todas as diferenças somos todos iguais.  “A fórmula de solidariedade revolucionária não é ‘vamos tolerar nossas diferenças,’ não é um pacto de civilizações, mas um pacto de lutas que atravessam civilizações, um pacto entre o que, em cada civilização, mina a sua identidade a partir de dentro, luta contra seu núcleo opressivo. O que nos une é a mesma luta. A fórmula melhor seria assim: apesar de nossas diferenças, podemos identificar o antagonismo básico na luta antagônica, em que ambos somos apanhados; então vamos compartilhar nossa intolerância, e unir forças na mesma luta. Em outras palavras, a luta emancipatória, não é das culturas em sua identidade, que se juntam as mãos, é dos reprimidos, dos explorados e dos sofridos, ‘das partes de não-parte’ de cada cultura, que se reúnem em uma luta compartilhada.” (tradução minha)

Então quando conclama que devemos, em ruptura com essa noção pós-ideológica multiculturalista, “repolitizar” a economia nós estaríamos então voltando àquela noção marxista ortodoxa de que só a crítica à economia importa por condicionar todas as demais esferas da vida? Não. Pelo contrário, Žižek admite o mérito da politização pós-moderna ao dar voz a âmbitos até então ignorados por grande parte da esquerda (feminismo, homossexuais, ecologia, questões étnicas, etc). A questão é então enxergar que é extremamente redutor separar âmbitos de luta economia com questões “culturais”. Um exemplo dado pelo autor é a luta de “minorias sexuais”:  a forma social de reprodução sexual é baseada no centro das relações sociais de produção em si; a família nuclear heterossexual é um componente-chave e uma condição essencial das relações de propriedade capitalista, comércio, etc.. Portanto esses movimentos quando minam e contestam a heterossexualidade normatizadora representam uma potencial ameaça ao modo de produção capitalista. É claro que o sistema capitalismo é capaz de acomodar mudanças sem alterar as condições de produção/exploração, mas há um limite para isso.

Martin Luther King Jr. marchando com grevistas em Memphis (1968). Em seus discursos não havia apelo a tolerância

Martin Luther King Jr. marchando com grevistas em Memphis (1968). Em seus discursos não havia apelo a tolerância

Essa “hegemonia da economia” proposta pelo Žižek não é a esfera do econômico determinando de maneira mecânica todas as formas de opressão (afinal muitas delas inclusive precedem o capitalismo), mas sim apontar para o fato de que estão todas ligadas ao econômico, todas sob a égide do capitalismo, esse universal realmente existente que tende a condicionar tudo.  A despolitização da economia seria então o principal impedimento para as alegações típicas de formas pós-modernas de subjetivação política (feministas, ambientalistas, etc.), atingirem toda sua radicalidade. Em suma, ele promove “um retorno à primazia da economia”, mas não em detrimento das reivindicações levantadas por formas pós-modernas de politização, mais precisamente para criar as condições para a implementação mais eficaz destas reivindicações. Nesse ponto a questão seria: ou se repoltiza a economia ou ficamos apenas no discurso culturalista.

Inicialmente o horizonte de luta do partido de Nelson Mandela era de inspiração socialista

Inicialmente o horizonte de luta do partido de Nelson Mandela era de inspiração socialista

Para exemplificar como essa crítica da tolerância e a repolitzação da economia serelacionam podemos pensar no exemplo, trabalhado por Žižek, de  Martin Luther King Jr. Nos anos que antecederam a sua morte, King mudou seu foco para a pobreza e o militarismo, porque ele achava que abordar estas questões (a fraternidade não apenas racial) é crucial para tornar a igualdade real. Para King teria sido uma obscenidade dizer que as pessoas brancas devem aprender a tolerar mais os negros; o objetivo do movimento dos direitos civis não foi simplesmente apelando para magnanimidade liberal, mas exigindo igualdade, incluindo a equidade econômica. A tolerância é um pedido que representa um recuo da visão mais ambiciosa. Também podemos pensar no caso de Nelson Mandela, abandonado o projeto mais universal de emancipação (de inspiração socialista) em prol de uma política de apaziguamento e de existência harmoniosa o que restou da África do Sul pós-apartheid foi a manutenção da condição de vida da maioria da população e aumento da violência entre os membros mais pobres da população.

Portanto, não é através do véu da tolerância que as demandas emancipatórias devem proferir seus discursos e pensar suas ações. Ao tratarmos de tolerância continuamos no âmbito do particular, o horizonte precisa ser mais amplo, e apontar para o universal.

 

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Bibliografia utilizada:

ZIZEK, Slavoj. En defensa de la intolerancia. Madrid: Ediciones sequitur, 2008.

ZIZEK, Slavoj. Tolerance as an Ideological Category. Lacan Dot Com, 2007. Disponível em: http://www.lacan.com/zizek-inquiry.html Acesso em: 22 de março de 2015.

ZIZEK, Slavoj Zizek: Por que o Socialismo de Mandela fracassou?. Pragmatismo Político, 2013. Disponível em: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/12/slavoj-zizek-por-que-o-socialismo-de-mandela-fracassou.html Acesso em: 22 de março de 2015.

ZIZEK, Slavoj Zizek. “The Audacity of Rhetoric.”. Saas-Fee: European Graduate School, 2008. Disponível em: http://www.egs.edu/faculty/slavoj-zizek/articles/the-audacity-of-rhetoric/ Acesso em: 22 de março de 2015.

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4 respostas para Qual a implicação da tolerância?

  1. Marcelo disse:

    Excelente reflexão!

  2. Maria Dirlene Marques disse:

    Concordo com o Marcelo. Excelente reflexao.

Comentários