Sobre a direita no Brasil, um primeiro passo necessário: atacar o senso comum reacionário.

Em tempos de efervescência política – e já podemos contar quase dois anos desde os levantes de 2013 – ainda causa perplexidade em muita gente o ressurgimento de bandeiras reacionárias nas ruas. Desde a defesa da ditadura, do neoliberalismo, passando aos ataques a políticas sociais dos governos petistas, ou aos movimentos sociais e sindicais críticos aos governos, ou ao dito ‘politicamente correto’ em geral, vimos nesses anos a expressão aberta do pensamento reacionário, e não apenas no fabuloso mundo das redes sociais, mas agora nas ruas do Brasil inteiro.

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Uma primeira atitude de pessoas e coletivos que se consideram de esquerda, uma reação instintiva, talvez, foi a denúncia ou desqualificação pura e simples dessas posições. Quando não o escárnio, merecido, dos discursos absurdos, afinal, muitas das bandeiras reacionárias não prezavam mesmo por qualquer argumento lógico, sendo apenas jargões já clássicos, como “Vai pra Cuba!”, “Forças armadas, salvem a democracia!”, “Direitos humanos para humanos direitos”, “Petralhas!!” (com sangue nos olhos) etc.

Pedido de intervenção militar no protesto do dia 15

Pedido de intervenção militar no protesto do dia 15

A denúncia e descontração, no entanto, se podem e dever ser feitas – até porque muita gente entrou na paranoia golpista –, não passam de um primeiro passo na negação dessas posições. É preciso ir a fundo para atacar o ressurgimento da direita radical, é preciso conhecer suas posições na sociedade brasileira, suas facções e contradições internas, o teor de seus discursos e práticas. Por isso, o blog capitalismo em desencanto inicia um ‘dossiê direita’, convidando novos autores parceiros, com suas muitas contribuições ao debate. Depois de avaliar os doze anos de governos do PT, em diversos ângulos, que se avance contra o extremo oposto do espectro político.

Como nossa contribuição para esse movimento, acreditamos que um ponto de partida necessário, até para dar alguma tranquilidade a esse debate, seja negar a iminência de um golpe de direita, de uma onda conservadora irrefreável, de uma nova ditadura militar. É claro que o ambiente está turbulento, saídas mais à direita são bem possíveis, especialmente em tempos de crise – a História é repleta de casos assim. Mas o alarmismo também desenfreado de setores próximos ao PT acaba ofuscando o fato de que a atual crise se deve também, em grande parte, às opções políticas tomadas pelo petismo, suas alianças fisiológicas com frações da própria direita, que agora cobram o seu preço, e sua forma de atuar tanto na máquina pública como nos movimentos social e sindical.

Tirinha por André Dahmer

Tirinha por André Dahmer

Por outro lado, cair no alarmismo ofusca o fato, inegável, do recente avanço dos movimentos populares e de minorias, expresso no aumento de mobilizações e greves, com um perceptível aumento da consciência da necessidade da luta política. Se há uma onda reacionária, que se pauta tanto em termos econômicos quanto em questões de ‘costumes’, ela é uma reação sim aos avanços e maior visibilidade em temas como desigualdade social, crise urbana, machismo, racismo, homofobia etc. Nossa sociedade não está ficando mais conservadora, o que estamos vendo é o conservadorismo sair do armário. É sempre importante lembrar que nos levantes de 2013, mesmo com toda a tentativa da mídia e de partidos de pautar a multidão, inclusive contra o governo federal, as bandeiras que mais se evidenciaram foram lutas por direitos, como aos serviços públicos mais básicos, críticas a gastos públicos exorbitantes com a Copa, e até mesmo a desmilitarização da polícia.

20/03 - Professores da rede estadual de São Paulo em greve

20/03 – Professores da rede estadual de São Paulo em greve

Agora, justamente lembrando 2013, fica também evidente o tamanho de nossa tarefa. Pois esse fantasma da direita e do golpe já rondavam naqueles idos, expressos nos gritos de ‘fora partidos’, no uso do verde-amarelo, e na presença de setores da extrema-direita. Baixada a poeira, porém, foi possível reconhecer que, mais do que uma onda de direita, um nacionalismo proto-fascista, o que levava as pessoas às ruas com esse discurso meio vazio era, de um lado, a insatisfação geral contra governos, com o sistema político, com a vida urbana, e de outro, uma profunda falta de experiência política.

Na média, as pessoas no Brasil parecem participar muito pouco de espaços de ação política, sejam eles do movimento estudantil ou sindical, ou mesmo de uma reunião de condomínio ou associação de moradores. E é essa falta de experiência e participação, essa falta de aprofundamento em temas políticos, essa falta de abertura ao contraditório, que abre largas margens para a vigência do senso comum. E, se em tempos mais amenos, algum senso comum progressista (pois ele também existe) pode vingar – o que talvez tenha ajudado a sustentar a imagem dos governos petistas como realmente populares –, em tempos de crise, ao contrário, talvez como forma de auto-preservação, vigora o discurso mais rasteiro contra o avanço das lutas sociais. E isso não apenas entre pessoas da classe dominante, muito pelo contrário. E aí mora o perigo.

Assim, como antes já se tinha aventado, é preciso disputar esse espaço de consciência, enfrentando o senso comum de direita em nosso cotidiano. É claro que essa é apenas mais uma das frentes, junto à luta cotidiana de movimentos, sindicatos e partidos, mas esse combate é algo que devemos travar nos nossos locais de convívio, nosso trabalho, família, vizinhança. E não é difícil perceber quando o senso comum reacionário se expressa, pois repousa em uma série de lugares comuns: a negação da divisão de classes e idealização do indivíduo, críticas aos sindicatos e movimentos sociais, críticas diversas à luta das minorias, defesa abstrata da meritocracia…

É importante, por exemplo, sempre que alguém criticar a esquerda por usar o vermelho ou o preto, desconstruir o velho nacionalismo, inflado por Vargas, reorientado pela ditadura, e ora incensado pelos petistas na imagem do Brasil país de todos, Brasil grande. E não basta lembrar que o verde e amarelo eram cores da família imperial, mas sim que quem agora defende exclusivamente o verde e amarelo nas ruas, no fundo, esconde suas verdadeiras cores – nunca a de um Brasil de todos. Nós entendemos que a sociedade é perpassada por uma polarização entre capital e trabalho, com base em exploração e acumulação do esforço de muitos no bolso de poucos – e, no Brasil, essa percepção é quase instintiva. A escolha do vermelho ou do preto explicitam uma tomada de posição contra o polo do capital. Contra o Brasil, de fato, está quem ameaça deixar o país para ir morar em Miami (logo onde…).

É preciso defender situações de resistência e manifestação, como no caso da luta por moradia. Falar em ocupação de imóveis ociosos, e não invasões da propriedade alheia, lembrando que a própria legislação atual prevê o direito à moradia e a função social da propriedade territorial. Entender que, mesmo não se concordando com situações de violência e quebra-quebra, mesmo se discutindo diferentes táticas para manifestações, muitas vezes elas ocorrem espontaneamente, como extravasamento de pressões sofridas dia-a-dia, e não por ação pura e simples de arruaceiros. E, o mais importante, que não costumam ser dirigidas contra pessoas, e sim contra o patrimônio – diferente da violência do Estado, pelas mãos policiais, essa diretamente atingindo pessoas, e sempre em situações que ameaçam o patrimônio.

Tirinha por André Dahmer

Tirinha por André Dahmer

É importante, sempre que alguém criticar os serviços públicos, lembrar que a sua precariedade não é inerente a eles, e que muitos governos os deixam ficar cada vez mais precários justamente por não ter interesse na sua manutenção – ao contrário, colocam-se em favor de empresas privadas ou da privatização. A máxima de que ‘a iniciativa privada é mais eficiente do que o serviço público’, por sua vez, só vale de maneira geral para a geração de lucros, pois não faltam exemplos de instituições públicas com trabalhos de excelência. Assim como a corrupção, longe de ser um mal próprio de servidores públicos, permeia toda a iniciativa privada, e é prática corrente de uma fração considerável da elite brasileira, na forma de sonegação de impostos. Do mesmo modo, sempre que alguém defender a meritocracia, deve-se perguntar exatamente o que a pessoa entende por isso. Na gestão pública, por exemplo, essa palavra, longe de qualquer valorização real do mérito individual (algo que é dificilmente mensurável), tem significado formas de controle sobre os trabalhadores e divisão dentro das categorias profissionais. E não custa lembrar que a defesa da meritocracia muitas vezes sai das bocas muito bem alimentadas de filhos e netos da nababesca elite brasileira.

Tirinha por Ricardo Coimbra

Tirinha por Ricardo Coimbra

É preciso intervir em uma conversa quando assuntos como estupro, aborto, cotas, criminalização da homofobia entram em cena sob a moda do dito  ‘coitadismo’, ou o velho argumento da vitimização. Pois, por mais que se imagine que alguém consiga se aproveitar de uma opressão que sofra, a regra geral é haver de fato vítimas: machismo mata, racismo mata, homofobia mata, e por aí vai. E a culpa nunca é das vítimas. E ponto. É preciso se colocar na luta contra essas formas de opressão, em primeiro lugar. Todas as possíveis táticas são decorrentes disso, sejam ou não as cotas ou leis específicas. O senso comum reacionário chega ao ponto de falar que, por, estatisticamente, morrerem mais heterossexuais, seria mais seguro ser gay ou lésbica no Brasil – absurdo desmontado pelo simples fato de ninguém morrer por ser heterossexual, e sim por diversas causas naturais ou não, mas quão e também atingem LGBT’s.

A lista segue, não há setor do movimento social, não há bandeira de esquerda que o senso comum reacionário esqueça. Diante das críticas à redução da maioridade penal, por exemplo, sempre haverá um “Tá com pena?, leva pra cuidar”, mesmo sob argumentos de que a grande maioria dos crimes violentos não é cometida por menores.

A tarefa, assim, parece inglória, mas não se trata de esperar convencimento, especialmente daqueles que estão efetivamente produzindo esses discursos. Podemos, e 11106239_805210422881569_67877810_ndevemos, sim, tentar convencer quem está simplesmente reproduzindo as barbaridades reacionárias, pois são a grande maioria. O ímpeto, contudo, deve ser o enfrentamento no discurso. Dar visibilidade às nossas pautas no desmonte do frágil senso comum, literalmente jogar a contradição para cima deles, até para os que realmente sejam reacionários se exponham. E sem a pretensão de mostrar que nós é que estamos certos, pois na Política não existe posição certa ou errada – outra faceta do senso comum, que fala na oposição entre posições técnicas e ideológicas (as nossas, claro…). As posições refletem ‘lados’ na sociedade, os muitos lados que convivem, não sem conflitos, sob o nome Brasil.

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