Tropa de elite do neoliberalismo (2): a direita transnacional, ontem e hoje

As empresas multinacionais despertarão mais atenção a cada ano, à medida que crescerem em importância mundial. Os ataques se tornarão mais fortes. Se não justificarmos nossa existência ante aqueles que podem influenciar e, talvez, controlar nossos destinos, no mínimo nos arrancarão pedaços a bala, se é que não nos liquidarão inteiramente.”
Athernon Bean, da International Multifoods, 1971.(1)

[Na primeira parte deste artigo, vimos como certa visão governista mistifica o caráter da conexão transnacional da chamada “nova direita”, e os equívocos da comparação da situação atual com a de 1964. Agora, veremos como eram essas conexões nos anos 1960 e como a partir do final dos anos 1970 ela se modifica internacionalmente.]

Brazil: Curriculum vitae

No Brasil dos anos 1960, a conexão transnacional seria de fundamental importância para a atuação de diversos dos grupos que procuravam desestabilizar o governo Jango (1961-1964), principalmente o grupo reunido em torno do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), “estado-maior” de uma espécie de “partido do grande capital” que abrigava o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática, responsável por receber o dinheiro dos EUA para financiar os candidatos da oposição udenista) e muitos elementos importantes da ESG (Escola Superior de Guerra).

O complexo IPES-IBAD-ESG, como demonstrou René Dreifuss (2), contava com a atuação de diversas outras entidades, apresentadas como autônomas, que procuraram construir bases na sociedade, mesmo no movimento operário, nas associações profissionais e de bairro, e até no movimento estudantil. O esquema de contribuições internacionais para campanhas eleitorais (proibidas por lei) era tão blindado que nem mesmo a CPI instalada em 1963 para investigar a atuação do IBAD conseguiu demonstrar como esses recursos chegavam ou por quem eram administrados, embora sua existência fosse largamente conhecida.

Notícia do Jornal Última Hora sobre as descobertas da CPI do IBAD, de 1963.

Notícia do Jornal Última Hora sobre as descobertas da CPI do IBAD, de 1963.

A conexão transnacional ia para além da entrada de recursos de campanha eleitoral. Envolvia uma miríade de projetos que iam desde cursos de formação sindical pelega para operários até viagens de intercâmbio de estudantes para os Estados Unidos, programa que visava explicitamente a absorção dos valores da livre iniciativa e do livre mercado. (3) O apoio de companhias estrangeiras ou brasileiras associadas ao capital estrangeiro foi farto.

A instalação da ditadura empresarial-militar em 1964 tornaria superado o objetivo de derrubar o populismo, mas a atuação de entidades privadas de caráter transnacional não diminuiria por isso. Ao contrário, consolidaria sua organicidade. Nos anos 1960 e 1970 destacaram-se o Council for Latin America (CLA) – posteriormente Council of the Americas (COA), entidade que se associa à Americas Society (AS), configurando a atual AS-COA, que apoiou a candidatura de Marina Silva em 2014 – e o Conselho Empresarial Brasil-Estados Unidos (CEBEU), criado em 1976 e atualmente existente sob a Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Comitê para o Desenvolvimento Econômico

Comitê para o Desenvolvimento Econômico

Entre as conexões transnacionais do IPES, pode-se destacar Committee for Economic Development (CED), entidade estadunidense criada no contexto da Depressão dos anos 1930 e que consolidou uma respeitável rede de congêneres pelo mundo.

O caráter geral da rede do CED, criado em meio à grande Depressão, era basicamente keynesiano, embora não se eximisse de políticas econômicas recessivas na periferia. No geral, entretanto, tratava-se de construir um determinado modelo de estado de bem-estar social que neutralizasse o poder do movimento operário, principalmente na Europa ocidental. Esse modelo começa a fazer água na década de 1960, e, a partir de então, abre-se um período de transformação política e ideológica nessas entidades internacionais.

Congêneres atuais do CED

Congêneres atuais do CED

Uma teia de novos think-tanks

Primeira reunião da Mont-Pelerín, em 1947.

Primeira reunião da Mont-Pelerín, em 1947.

Com a avalanche neoliberal, a partir do final dos anos 1970, a configuração desse tipo de “ativismo” transnacional também se modifica, com a proliferação de entidades que pretendem “espalhar a liberdade” e a democracia do livre mercado mundo afora.
A famosa Sociedade de Mont-Pelerín, estação de esqui na Suíça onde começaram a se reunir nomes como Ludwig von Mises (1881-1973), Friedrich von Hayek (1899-1992), e Milton Friedman (1912-2006), sempre lembrada como principal centro de formação da agenda neoliberal, constituiu basicamente o momento do ostracismo aristocrático destes intelectuais ultra-conservadores. Com a conquista de posições ao longo dos anos 1970, começam a formar-se ainda nessa década os think-tanks (tanques de pensamento) de orientação marcadamente neoliberal – diferenciando-se de entidades previamente existentes, como a Comissão Trilateral (4).

O geógrafo David Harvey destacou a atuação dessas entidades privadas naquilo que chamou de “construção do consentimento” em relação ao neoliberalismo. Num espaço de tempo relativamente curto, foram

Primeiro episódio da série Free to Choose

Primeiro episódio da série Free to Choose

fundadas ou revitalizadas diversas outras entidades comprometidas com o ideário neoliberal e neoconservador. (5) A Scaife, por exemplo, financiou, ainda em 1977, a versão televisada do livro de Milton Friedman Free to choose, transmitida simultaneamente para centenas de países.

Atlas Network

Carta de F. Hayek a Anthony Fischer sobre o êxito do Institute for Economic Affairs

Carta de F. Hayek a Anthony Fischer sobre o êxito do Institute for Economic Affairs

O Atlas Network insere-se precisamente nesse movimento. Seu fundador, Anthony Fischer, foi um empresário britânico que se torna seguidor e colega de Hayek, no contexto da ascensão do partido trabalhista, em 1945. Ambos acusavam o governo trabalhista de “comunismo”, por conta da construção do sistema de bem-estar social. Em 1955, eles fundariam o Institute for Economic Affairs (IEA), o qual seria reconhecido pela própria Margareth Thatcher como organização fundamental no movimento que a levou ao poder em 1979. (6) Fischer se radicou nos EUA em 1981, ano em que fundou a Atlas Economic Research Foundation.

Fischer e Tatcher

Fischer e Tatcher

Ao que tudo indica, o nome do instituto pode ser uma referência a uma famosa obra de Ayn Rand (1905-1982), russa emigrada para os EUA em 1926 e que se tornaria importante referência dos “libertarianos”, como eles gostam de ser chamados. A Revolta de Atlas (Atlas Shrugged) foi considerado por seus seguidores um libelo contra o “populismo” e a interferência do Estado na vida privada dos cidadãos. Anti-comunista ferrenha, Rand colaborou nos anos 1950 com o famoso Comitê de Atividades Anti-americanas de Joseph McCarthy, “denunciando” diversos artistas de Hollywood.

Fomentadores profisssionais de entidades neoliberais , o Atlas tem um guia de como formar o seu próprio think-tank.

Fomentadores profisssionais de entidades neoliberais , o Atlas tem um guia de como formar o seu próprio think-tank.

O Atlas Network atua basicamente como fomentador, financeiro e intelectual, de entidades que têm como princípio a defesa de “políticas públicas orientadas para o mercado.” Ajudam mais de 400 think-tanks em mais de 80 países – entidades que são orientadas a não se envolver diretamente na política partidária.

No Brasil, há nove entidades ligadas ao Atlas Network. É fato, portanto, que esse instituto é um elemento comum da conexão transnacional dessas entidades que, na prática, conformam um mesmo “partido”, no sentido gramsciano. “Muitos membros do Movimento Brasil Livre passaram pelo programa de treinamento do Atlas Network, a Atlas Leadership Academy, e estão agora aplicando o que aprenderam no solo em que eles vivem e trabalham”, dizia artigo publicado no site da entidade. (7)

Entidades brasileiras ligadas ao Atlas Network.

Entidades brasileiras ligadas ao Atlas Network.

Segundo o presidente do Atlas, o argentino radicado nos EUA Alejandro Chafuen, entrevistado pelo jornal Valor Econômico, o instituto tem um orçamento anual de 9 milhões de dólares, dos quais 80% são usados em viagens de palestrantes e “programas de treinamento” (os quais pelo menos 35 brasileiros já freqüentaram). O Brasil é um dos países latino-americanos que mais recebem recursos, cerca de 20 mil dólares anuais, enquanto a média para os demais países é de 10 a 15 mil dólares anuais. Como admite Juliano Torres, do “Estudantes pela Liberdade” – voltado para combater a “doutrinação esquerdista” nas universidades – as doações do Atlas ao grupo já ultrapassaram 10 mil dólares. (8)

O Centro para o Empreendimento Privado Internacional -  Center for International Private Enterprise

O Centro para o Empreendimento Privado Internacional – Center for International Private Enterprise

Note-se que o Atlas certamente não é a única conexão transnacional importante das entidades em tela. O Instituto Liberal, por exemplo, é ligado principalmente ao CIPE – Center for International Private Enterprise. (9) Muito ainda precisa ser estudado sobre o assunto; no entanto, é possível ver que trata-se de uma rede generosamente financiada e com grande inserção internacional.

Na última parte deste artigo: o caráter auto-imune do neoliberalismo e do neoconservadorismo

Notas:

(1) MULLER, Ronald & BARNET, Richard. Global Reach. The Power of the multinational corporations. Nova York: Simon and Schuster, 1974.

(2) DREIFUSS, René A. 1964: a conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1984.

(3) DREIFUSS, René. A Internacional Capitalista. Estratégias e táticas do empresariado transnacional (1918-1986). 2ª edição. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1987.p.181-182.

(4) Sobre algumas dessas diferenças, ver HOEVELER, Rejane Carolina. As elites orgânicas transnacionais diante da crise: os primórdios da Comissão Trilateral. Dissertação de mestrado. Niterói/UFF: 2015. p.96-141.

(5) Por exemplo a Heritage Foundation, o Hoover Institute, o Center for the Study of American Business, o American Institute Enterprise Institute, a Olin, o Smith Richardson, o Pew Charitable Trust e a Scaife.

(6) Ver PRUNES, Cândido Mendes (org.). Hayek no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 2006.p.15.

(7) O mesmo entusiasmo pôde ser encontrado no New York Times: http://www.nytimes.com/aponline/2015/03/30/world/americas/ap-lt-brazil-rising-right.html?_r=4.

(8) MORAES E SOUZA, Marcos. “Entidade americana pró-mercado dá base teórica a manifestantes pró-Dilma”. Valor Econômico, 27 de abril de 2015.

(9) Ver CASIMIRO, F.H.C. A construção simbólica do neoliberalismo no Brasil: a ação pedagógica do Instituto Liberal (1983-1998). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de São João Del Rey, 2011.

Sobre Rejane Carol

Rejane Carol é historiadora, carioca de Osasco e internacionalista.
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