Existem alternativas: sobre o ajuste fiscal impopular, dívida pública, inflação e a necessidade de reformas populares

  • Texto escrito por Leonardo de Magalhães Leite, professor de Economia Brasileira na UFF (1)
O famoso lema neoliberal da primeira-ministra inglesa.

O famoso lema neoliberal da primeira-ministra inglesa.

Não existe alternativa – ou there is no alternative (TINA) – era o slogan da ex-primeira-ministra britânica Margareth Thatcher no começo dos anos 1980. É a expressão mais fiel do pensamento neoliberal e poderia ter sido encontrada por qualquer jornalista no discurso de apresentação das novas medidas de ajuste fiscal pelo governo brasileiro na semana passada.

Sabemos que se trata de um ajuste fiscal extremamente duro para a classe trabalhadora. Tanto pelo ajuste em si quanto pelos seus resultados: desemprego, redução de salários e diminuição do poder de barganha dos sindicatos.

No discurso oficial, a necessidade do ajuste decorre da elevação recente da dívida pública em relação ao PIB (apesar da dívida líquida estar estacionada entre 32 e 35% do PIB desde 2012, a dívida bruta em relação ao PIB aumentou 9 pontos percentuais entre julho de 2014 e julho de 2015). Frente a essa suposta trajetória explosiva, o governo precisaria recuperar o superávit primário para diminuir a taxa de crescimento da proporção dívida bruta/PIB e manter a atratividade dos títulos públicos – já que esse indicador é uma espécie de mensurador do risco de solvência.

Aqui já se manifesta o TINA thatcheriano. O governo, a imprensa e o mercado omitem que o resultado fiscal – responsável pela variação da dívida pública – é composto por dois grandes agregados: o primário e o financeiro. Em outras palavras: o resultado público nominal, ou a chamada necessidade de financiamento do setor público, é igual ao resultado primário mais o pagamento de juros. Ao exaltar a responsabilidade do primário, o pensamento neoliberal está comprometido com a destruição de conquistas democráticas da sociedade brasileira como educação e saúde públicas e universais.

Essa omissão é gravíssima pois, em magnitude, o pagamento de juros – o que estamos chamando de agregado financeiro – é muito mais importante para entender a crise atual que o déficit primário. Por exemplo, no acumulado de 12 meses encerrados em julho de 2015, o déficit nominal era de 8,81% do PIB, decompondo-se em 7,92% para pagamento de juros e apenas 0,89% para déficit primário. Portanto, aproximadamente 90% das necessidades de financiamento do setor público decorrem do agregado financeiro.

Como reduzir a taxa de juros e a dívida pública?

Dilma, Levy e o ajuste

Dilma, Levy e o ajuste

O ajuste fiscal montado sobre o agregado primário tem um impacto potencial na relação dívida/PIB muito pequeno se comparado a um ajuste fiscal que incidisse sobre o pagamento de juros. Além disso, o efeito social de um ajuste de um tipo ou de outro é radicalmente diverso. Uma estratégia de desenvolvimento alternativa, antineoliberal, passa, necessariamente, pela redução dos gastos financeiros do governo. Sendo mais específico, o caminho para isso é a redução da taxa básica de juros, que é a taxa que o governo cobra da dívida emitida por si mesmo e definida por ele próprio. A questão é: como fazer essa redução?

Ela é um preço importante da economia e seu valor é mais ou menos definido a partir de um conjunto de restrições técnicas. No caso brasileiro, a taxa de juros responde a três restrições, que funcionam como condicionantes: manter a inflação sob controle, garantir a atratividade dos títulos públicos e interferir na entrada e saída de capitais externos.

A redução das despesas com juros depende que os três condicionantes estejam sob controle. Vamos identificar, na sequência, que tipos de políticas poderiam ser feitas para abrir o leque de alternativas em direção a uma estratégia de desenvolvimento antineoliberal. O objetivo desse exercício é mostrar que, sim, existem alternativas!

Em primeiro lugar, a inflação. Sob esse ponto de vista, precisamos ter claro que reajustes de preços em alguns setores tem impacto maior na inflação do que se fossem feitos em outros setores. Por exemplo, os produtores de bens industrializados tem pequena margem para subir preços graças à concorrência com os importados. Para esses setores, a saída mais eficaz para evitar a inflação é a abertura comercial, isto é, colocar o produtor nacional frente a frente ao concorrente estrangeiro, sem barreiras para que este coloque seu produto à venda no Brasil. (Para evitar mal-entendidos, destaco que esta saída depende da estabilização da taxa de câmbio ao redor de algum patamar). Trata-se de uma medida bastante controversa dentro da esquerda, mas que trago aqui para polemizar com as frações keynesianas ou desenvolvimentistas. Temos na nossa história o registro de como a burguesia nacional utiliza as barreiras comerciais para aumentar suas margens de lucro elevando preços, consequentemente reduzindo o poder aquisitivo da classe trabalhadora, ou, o que é a mesma coisa, aumentando as possibilidades de superexploração da força de trabalho. Portanto, a abertura comercial tem o propósito de desarmar parte da burguesia nacional de sua principal ferramenta na luta de classes: a definição dos preços.

Para outros setores, como serviços e alguns tipos de alimentos, não existe concorrência externa. Não é por outro motivo que a inflação brasileira dos últimos anos se caracteriza como inflação de serviços, já que a demanda excedente não é desviada para importações. Dentro do principal índice de inflação, o índice nacional de preços ao consumidor amplo (IPCA), os serviços de habitação tem peso de 14% no total e alimentação e bebidas tem peso de 22%. Ou seja, tratam-se de dois itens importantes para o entendimento da dinâmica geral da inflação no Brasil, sendo determinados pela combinação das forças internas de oferta e demanda. Para atacar os problemas provenientes desses dois setores, são necessárias duas reformas estruturais: urbana e agrária. Por um lado, uma reforma urbana que estabeleça um sistema tributário progressivo ou escalonado sobre a propriedade de imóveis enfraqueceria a especulação imobiliária e geraria dois efeitos combinados: reduziria o déficit habitacional com a utilização social dos imóveis excedentes e, com isso, reduziria a demanda por aluguéis. Por outro lado, sabe-se que a maior parte dos alimentos consumidos pelas famílias brasileiras é produzido na agricultura familiar, de forma que uma reforma agrária poderia aumentar a oferta de alimentos saudáveis. Para que os alimentos cheguem aos consumidores finais com preços justos, a distribuição deve ser intermediada por uma grande empresa pública – como a atual Conab, por exemplo – que deveria ser capaz de atuar, também, no varejo – fortalecendo, por exemplo, cooperativas de consumo. Trata-se de uma medida para diminuir o poder que os grandes oligopólios do varejo tem para influenciar preços.

A segunda restrição técnica para diminuir a taxa de juros é manter a atratividade dos títulos públicos. Esse ponto também carrega bastante polêmica dentro da esquerda, afinal poderíamos declarar a moratória da dívida e nos livrar das limitações impostas pelo mercado financeiro. Me parece que a questão não é tão simples assim. A moratória, nas circunstâncias atuais, teria o efeito prático de enclausurar novas emissões de dívida aos recursos disponíveis nos bancos públicos. Se isso ocorrer e o governo, por qualquer circunstância, fechar o ano com déficit primário, como seria possível financiá-lo? Sem acesso aos mercados de crédito e supondo que a quantia disponível pelos bancos públicos fosse insuficiente, o Tesouro seria obrigado a financiar o déficit primário com empréstimos do Banco Central que, por sua vez, teria de recorrer à emissão de moeda. Fatalmente, a maior quantidade de moeda em circulação aumentaria as possibilidades de inflação e, novamente, poderia levar à superexploração da forca de trabalho. Por esse motivo, o recurso à moratória, nesse momento, não me parece a melhor alternativa.

O mercado de crédito trabalha com a relação risco-retorno na definição de quanto e a que preço emprestar. À taxa de juros vigente atualmente, sabemos que há um excesso de demanda por títulos públicos. Isso sinaliza que o prêmio oferecido pelo governo (a taxa de juros) está acima daquele que seria exigido pelos investidores, conformando uma situação na qual o mercado está tendo confiança na capacidade de pagamento do governo apesar do aumento recente da razão dívida/PIB. Dessa forma, de acordo com as circunstâncias atuais, essa segunda restrição técnica não é um problema para a redução da taxa de juros. Mesmo se fosse, haveria espaço suficiente para diminuir o risco associado à dívida pública através de reformas que ampliassem a base tributária e a arrecadação de impostos diretos, com incidência sobre capital, renda, riqueza e transmissão intergeracional da riqueza.

A terceira e última restrição técnica à redução da taxa de juros é o papel desta na atração de capitais externos. Desde o boom de commodities e o enorme acúmulo de reservas cambiais em meados dos anos 2000, sabemos que a probabilidade de problemas no balanço de pagamentos no curto prazo é pequena. Dessa forma, ao contrário do que prevalecia nos anos 1990, não é necessário – mantidas as circunstâncias atuais – utilizar a taxa básica de juros para atrair capitais especulativos. Sabemos, por outro lado, que a economia brasileira tem problema crônico na conta corrente, especialmente na conta de rendas, que se agrava junto com a deterioração da economia mundial. Trata-se de uma característica estrutural do capitalismo dependente que se manifesta nas remessas de lucros das companhias multinacionais e no pagamento de juros da dívida externa pública e privada. Para se ter uma ideia, no ano passado as grandes corporações remeteram 31 bilhões de dólares ao exterior, sendo que o déficit total em transações correntes foi de 103 bilhões de dólares. Portanto, se necessário for, há espaço para reduzir a necessidade de capitais especulativos através da regulação das remessas de lucro ao exterior.

Em síntese, apresentei elementos para rediscutirmos como enfrentar a dívida pública em um contexto de deterioração das condições de vida para a imensa maioria da população. Tomei como hipótese estruturante do meu argumento que a inflação é um instrumento da classe dominante e, portanto, péssima para a classe trabalhadora. A agudização da luta de classes historicamente toma a forma de inflação no Brasil (lembrem-se do governo João Goulart entre 1961 e 1964, cuja narrativa de Ruy Mauro Marini em Subdesenvolvimento e Revolução é precisa). Com isso em mente, os caminhos para uma estratégia de desenvolvimento a partir da classe trabalhadora passam por reformas populares que, dentre outras coisas, contribuam com o enfrentamento à capacidade persuasiva da burguesia em reajustar preços.

(1) Agradeço aos amigos José Luiz Alcântara Filho e Sandro Pereira Silva por críticas a uma versão preliminar deste texto.

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2 respostas para Existem alternativas: sobre o ajuste fiscal impopular, dívida pública, inflação e a necessidade de reformas populares

  1. José Alberto Bandeira Ramos disse:

    O artigo é, declaradamente, bem intencionado, já que pretende sair em defesa dos interesses de classe dos trabalhadores. Precisaria ser mais didático para evidenciar o antagonismo desses interesses frente à voracidade do capital financeiro. O pagamento de juros aos capitalistas, via dívida pública, como prioridade de governo, constitui o crime principal! Aí está o nó da questão. É necessário desmascarar a mentira da chamada “dívida pública”!

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