A primavera estudantil nas escolas paulistas: contra a reorganização neoliberal, a ocupação democrática!

Por Fábio Morales
Doutor em História Social pela USP; Docente de Arqueologia e História Antiga na PUC-Campinas; professor há 14 anos.

“Estamos em um Estado democrático, é arbitrário que um grupo tome conta de um prédio público e impeça seu funcionamento” – foram as palavras ditas por uma funcionária da Diretoria de Ensino da Região Centro-Oeste de São Paulo, registradas pela reportagem do jornal O Estado de São Paulo, no dia 10 de novembro de 2015. Quando diz “grupo” que pode impedir o “funcionamento” da escola, a gestora não se refere ao governo Alckmin e sua proposta de fechar – ou, como disse a Folha de São Paulo, usando aspar, “entregar” – 94 escolas estaduais. Não: o “grupo” em questão são cerca de 40 alunos, com média de idade de 16 anos, que ocuparam a EE Fernão Dias Paes – localizada no bairro de Pinheiros, em São Paulo – às 6h da manhã na sexta-feira. Em nome do “Estado Democrático”, a diretoria de ensino acionou a Polícia Militar; cerca de 50 policiais militares entraram em “confronto” com os alunos por volta das 17h, fazendo com que uma adolescente desmaiasse com a inalação do gás de pimenta. Diante da resistência dos estudantes em permanecer na escola, o governo Alckmin, em nome da democracia, decidiu cortar a água do prédio; os policiais militares, também em nome da democracia, cercaram a escola e impediram que água e comida fossem dadas aos ocupantes pela multidão de pais e militantes que se aglomeravam do lado de fora. Duas horas depois, após denúncia nas redes sociais, a água foi restabelecida, e aos poucos a Polícia Militar permitiu, após revista, a entrada de pessoas com água e comida. O ilustre secretário da Educação, o engenheiro com doutorado em trincas em chapas de alumínio e ex-reitor da Unesp por indicação de Geraldo Alckmin, Herman Jacobus Cornelis Voorwald, num gesto de particular espírito democrático, ofereceu um ônibus para levar os alunos até a Secretária de Educação para negociar sua saída do prédio (sic); demonstrando que política não se aprende por meio de indicações, os alunos recusaram a “oferta”, e resistiram.

Créditos da imagem: O Mal Educado

Escrevo este texto na segunda-feira, dia 16/11: a escola permanece ocupada pelos alunos; após decisão do juiz Luis Felipe Ferrari Bedendi de não conceder a reintegração de posse – afirmando que não se trata de “proteção da posse, mas uma questão de política pública”, além de questionar o preparo da Polícia Militar no trato com os alunos –, o cerco militar à escola foi interrompido. Desde a ocupação da terça-feira, 10, mais quinze escolas na Grande de São Paulo foram ocupadas por seus alunos, e diversas escolas no interior do estado – em particular Campinas, Piracicaba, Araraquara e Hortolândia (a única cidade paulista onde o atual governador Geraldo Alckmin não venceu a eleição em 2014) – tem escolas agitadas por assembléias, ocupações e protestos. Ao mesmo tempo, gestores e professores das escolas estaduais foram convocados pela secretaria da Educação a explicar, na manhã de hoje, sábado, a “reorganização” a pais e alunos.

A famigerada “reorganização” é provavelmente a política mais notória da gestão de Herman Voorwald na secretaria da Educação do Estado de São Paulo, pasta que comanda desde 2011. Antes de a discutirmos mais detidamente, vale a pena apresentar nosso personagem principal. Antes de ser indicado por Alckmin como secretário da Educação, Herman Voorwald tinha apenas uma publicação científica na área: um capítulo sobre “comunicação e educação” em um livro editado em 2009 pela Fundação Padre Anchieta, da qual era membro do conselho curador. A primeira publicação apareceria somente em 2013: Herman Voorwald foi co-autor de um livro sobre Educação Integral, publicado pela Imprensa Oficial do Governo do Estado – cujo contrato, sem licitação, foi despachado pelo próprio Herman Voorwald. Em seu currículo, afirma que é autor de um livro intitulado “Educação básica no Estado de São Paulo: avanços e desafios”, publicado em 2014 por duas fundações ligadas ao Governo do Estado (FDE/SEADE) quando, na verdade, é apenas autor de um capítulo de 20 páginas com relatos e análises das políticas de sua gestão, intitulado “Novos Desafios da Educação Paulista“. Em um trecho particularmente irônico deste capítulo, o ilustre secretário disserta sobre o tema “protagonismo juvenil”. Diz o autor:

“Protagonismo juvenil, uma característica marcante no Novo modelo [de escola de tempo integral], é sinônimo de iniciativa própria por parte dos alunos e de participação de fato. O jovem abraça com força suas responsabilidades no presente processo e sabe que, em grande medida, é dessa atitude que pode depender o seu sucesso futuro. Clubes Juvenis são ambientes onde, para além das salas de aulas, os alunos vivenciam seu protagonismo” (VOORWALD, H. Novos desafios da rede estadual paulista. In: NEGRI, B.; TORRES, H.; CASTRO, M. (orgs). Educação básica no Estado de São Paulo: avanços e desafios. São Paulo: FDE/SEADE, 2014, p. 396).

Sendo especialista em trincas em chapas de alumínio, o secretário deve ter percebido que corte de água e pedidos de reintegração de posse com a polícia militar se encaixam de modo bastante imperfeito à ideia de “protagonismo juvenil”. A gargalhada, algo trágica, é livre.

Voltemos à reorganização. A atabalhoada iniciativa está fundada na leitura de dois fenômenos diferentes, mas relacionados. O primeiro se relaciona à crise do modelo pedagógico da escola pública. Ainda nos anos 90, o sistema baseado nos “ciclos” de três ou quatro anos foi implantado como forma de superar o sistema massificado da seriação – no qual os alunos devem demonstrar o rendimento anual em função dos conteúdos pré-determinados, devendo repetir o ano caso não atingissem uma média mínima –, respeitando os diferentes ritmos de aprendizado dos alunos para além de sua idade ou rendimento anual. No entanto, a manutenção das estruturas político-pedagógicas na lógica da seriação fez, no mais das vezes, que os ciclos não passassem de uma falácia na qual os professores se sentem acuados pela “aprovação automática”. A leitura do doutor em engenharia mecânica Herman Voorwald e equipe é que um caminho para solucionar este impasse é que as escolas públicas se especializassem em apenas um ciclo – Anos Iniciais do Ensino Fundamental, Anos Finais do Ensino Fundamental, ou Ensino Médio – como meio de aumentar o rendimento escolar de seus alunos, além do que escolas com alunos da mesma faixa etária seriam muito mais fáceis de serem administradas.

O segundo fenômeno é a redução da clientela do sistema estadual de ensino. Segundo a secretária, tal redução (cerca de 2 milhões de alunos nos últimos qunze anos) se deve a dois fatores: a redução no número de nascimentos e a municipalização do ensino (em particular o Fundamental). Com isso, haveria um excesso de salas ociosas nas escolas estaduais, o que motivaria o fechamento de algumas escolas estaduais (94), algumas delas sendo municipalizadas, outras sendo entregues ao Centro Paula Souza (autarquia estadual responsável pelo ensino técnico em São Paulo.) e a órgãos públicos diversos.

Não é tarefas das mais árduas desmontar os argumentos da secretaria de Educação do governo Alckmin. Em primeiro lugar, a crise do modelo cíclico pouco tem a ver com a exclusividade ou não de um ciclo por escola; pelo contrário, é a estrutura político-pedagógica da escola, centrada na transmissão e não na aprendizagem, que está na base desta crise. Uma escola que perpetua a lógica penitenciária do medo da punição (reprovação) como principal argumento para o aprendizado não escapará da reiteração dos privilégios anteriores à escola (o capital cultural de que fala Bourdieu): aqueles que, no ambiente familiar, já recebem os instrumentos valorizados no ambiente escolar, terão terão vantagem sobre aqueles que tem na escola o único meio de educação formal; a aprovação automática, assim, escamoteia a perpetuação destas desigualdades, pois o que se valoriza, ao fim e ao cabo, é a transmissão dos conteúdos selecionados pela cultura escolar, e não a construção de conhecimento que toma o aluno como sujeito de uma ação coletiva. No mesmo sentido, a escolha de segregar os alunos em função da faixa etária dispensa uma série de possibilidades de convivência e transmissão de experiências entre alunos de faixas etárias diferentes; ora, se é óbvio que integrar pessoas de trajetórias e biografias diferentes é um grande desafio, qual a melhor instituição para tanto que não a escola pública? Em suma: sem a democratização real da escola, na linha do que se tem feito nas experiências de “escolas sem muros” e do “orçamento participativo das crianças”, as “reorganizações” não passam de justificativas para os salários de funcionários indicados pelo governador sem qualquer experiência ou produção intelectual significativa para a educação básica.

Em segundo lugar, a redução do número de alunos nas escolas estaduais não se explica somente pela demografia ou pela municipalização: se por um lado o número de matrículas no ensino fundamental e médio tem crescido nos últimos anos (após um período de forte redução entre 2006 e 2007 no EF e 2004 e 2007 no EM), por outro, é observável um crescimento significativo na participação das escolas particulares nas matrículas totais: no Ensino Fundamental passou de 12% em 2000 para 17%, em 2013; no ensino Médio o aumento foi menor: de 13,5% em 2000, as escolas particulares passaram a 14,6 em 2013. Ou seja: o número de matrículas tem aumentado, enquanto a crise da educação estadual tem levado ao aumento da opção de matrícula em escolas particulares. Cenário este que tem perspectiva de alteração em função da crise econômica atual: percebesse um movimento de retorno da escola particular para a pública, o que levará, obviamente, a um aumento de alunos na rede pública, demandando mais salas.

Para além dos dados do censo, as denúncias de salas superlotadas no início do ano de 2015 – incluindo salas com 85 alunos – demonstram não apenas a inépcia de gestores, como, fundamentalmente, a decisão política de sucatear a educação com o fechamento das escolas. A decisão de reduzir a quantidade de alunos por sala – cujo teto atual é de 45 alunos – poderia significar o aumento da qualidade do trabalho do professor; ao invés disso, o governo, mesmo após a maior greve da história da categoria, mantém um salário infame (600 reais mensais para aqueles que, na luta por aulas, não conseguirem mais de 12 aulas semanais), ao mesmo tempo em que reitera o princípio de lotação das salas, mesmo diante do já demonstrado prejuízo ao rendimento dos alunos.

Em síntese: a inépcia e autoritarismo do governador e seu secretário não escondem o projeto claro de sucateamento da escola pública estadual, obra que tem sido levada a cabo com sucesso nos últimos 20 anos de governo do PSDB em São Paulo. Contra a inépcia e o autoritarismo, a democracia direta e ativa dos alunos secundaristas, apoiados pelos antigos e pelos novos movimentos sociais. Que às primaveras feminista e negra se junte a primavera estudantil, e faça com que a escola se torne, por fim, um espaço democrático!

Esse post foi publicado em Cidade, Educação, Política. Bookmark o link permanente.

Uma resposta para A primavera estudantil nas escolas paulistas: contra a reorganização neoliberal, a ocupação democrática!

  1. Pingback: O Campo em Movimento: as lutas rurais brasileiras em 2015 | Capitalismo em desencanto

Comentários