“Vivendo felizes para sempre!”: Transformações e continuidades nas “novas” Princesas Disney

I. Concluindo uma breve polêmica.
Em maio de 2013 publiquei uma pequena análise dos filmes das Princesas Disney e, desenvolvendo um breve modelo, empreendi uma caracterização geral das protagonistas dos filmes “clássicos” (lançados até a década de 1990) como trabalhadoras e subalternas; em agosto do mesmo ano voltei ao tema e, dialogando com algumas respostas ao primeiro texto, analisei as ideias de historicidade e processo histórico nos referidos filmes e na própria apreensão dos comentaristas. Desenvolvo agora a terceira (e última!) parte dessa série: retomando os dois textos anteriores analiso o conjunto formado pelas “Novas Princesas” e aponto alguns elementos para uma crítica mais geral das animações infantis e de seus impactos nas crianças.

No segundo texto da série, considerei as críticas fundadas no par período de produção/representação das histórias/animações. O elemento central agora é a suposta transformação radical das Princesas Disney após a década de 1990. Nesse sentido, as críticas que desenvolvi seriam válidas para as “Princesas Clássicas”, mas não para as “Novas Princesas”.

II. Rupturas e continuidades.
Antes de prosseguirmos, contudo, é necessário abandonar o binarismo simplório que opõe continuidade ou ruptura. A dinâmica mais fundamental do conjunto formado pelas Princesas Disney, até o momento, tem sido justamente a sua capacidade articular esses dois aspectos. Ou seja, o que encontramos são continuidades em meio à rupturas e rupturas em meio à continuidades.

Se nos anos 1990 já é perceptível para a própria Disney que o modelo tradicional precisava sofrer transformações, esse ainda é um processo marcado por avanços e recuos sucessivos. Assim, Ariel (A Pequena Sereia, 1989) e Jasmine (Aladdin, 1992) se afastam um pouco do modelo clássico, mas Bela representa um explícito recuo (A Bela e a Fera, 1991). Pocahontas (Pocahontas, 1995) e Mulan (Mulan, 1998) representam os momentos mais incertos dessas transformações e, como tais, são chaves para entender a tônica dos filmes posteriores. É nesse sentido, portanto, que analisaremos brevemente cada um dos filmes das “Novas Princesas” e as suas relações com as produções anteriores. Tal análise será empreendida em dois eixos: a relação trabalho (doméstico) e subalternidade que elaborei no primeiro texto; e a função da ideia de casamento em cada uma das animações.

Mas quem são as “Novas Princesas Disney”? Considerando os argumentos acima (i.e., a década de 1990 como um momento de transição), seria razoável considerar apenas as protagonistas dos filmes lançados após o ano 2000 como pertencentes ao conjunto das “Novas Princesas”. Contudo, optei por agregar Mulan à análise abaixo dado o seu caráter de elemento-chave nessa transformação. Além disso, a imensa maioria dos comentários aos dois primeiros textos mencionavam Mulan como o grande exemplo de uma “princesa nova”. O conjunto, portanto, seria constituído pela seguintes personages: Mulan (Mulan, 1998), Tiana (A Princesa e o Sapo, 2009), Rapunzel (Enrolados, 2010) e Merida (Valente, 2012).

III. “Novas Trabalhadoras e Subalternas”?
O elemento central do modelo que desenvolvi no primeiro texto vinculava as Princesas ao desempenho de trabalho (doméstico, compulsório ou não) enquanto estas eram reconhecidas em condição de subalternidade. Assim, o desfecho dos referidos filmes era sempre o resgate da princesa (através da intervenção do Príncipe) de ambas as condições: de trabalhadora e subalterna. Tal modelo pode ser resumido, portanto, na seguinte questão: Quem pega na vassoura?

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Nesse aspecto e em outros, Mulan destoa completamente do conjunto: não é e não se torna aristocrata no decorrer do filme. Mesmo nessa condição, é representada desempenhando trabalho doméstico apenas lateralmente e de forma pouco hábil.

Tiana nos remete novamente a caracterização de trabalhadora e subalterna, uma vez que o fato de ser trabalhadora (aqui como algo positivado, como meio de ascenção social) e subalterna são as características mais enfatizadas na apresentação da personagem. São estas características que fornecem o contraste tanto com sua amiga de infância quanto com o Príncipe (ricos e não-trabalhadores);

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Rapunzel retoma a tradição da aristocrata que não conhece seu real estatuto e, consequentemente, desempenha trabalho doméstico. Em contraste direto com Tiana, o trabalho que realiza não é positivado, é apenas trabalho doméstico e, como tal, sua responsabilidade.

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Merida, assim como Mulan, destoa em alguma medida do conjunto. Nesse aspecto específico, poderíamos argumentar que jamais perde sua condição aristocrática e justamente por isso não aparece realizando trabalho. Contudo, sua inadequação ao conjunto é mais profunda do que isso, elemento que abordaremos posteriormente.

IV. Casamento
Outro elemento básico nas animações em questão é a papel do matrimônio, não apenas como conclusão da história, mas como eixo em torno do qual esta se desenvolve. No que tange às Princesas Clássicas, o matrimônio é o meio fundamental de abandono da condição de subalternidade. Se as “Novas Princesas” representam uma ruptura tão drástica em relação as suas congêneres, é razoável supor que esse elemento também sofre alguma transformação.

Mulan, mais uma vez, rompe com a convenção: não apenas não existe príncipe no filme (ainda que exista par romântico) como não há casamento (ainda que implícito).

Um par-romântico, mas não um príncipe.

Um par-romântico, mas não um príncipe.

Tiana (o filme mais tradicional do conjunto) não apenas se casa com o Príncipe como a idéia de casamento é um elemento central no desenrolar do filme e efetiva resolução da trama: Tiana recupera sua condição humana por meio do casamento.

Tiana e Naveen

Em Enrolados, o casamento é algo tão óbvio que em uma das últimas falas do filme, o protagonista masculino (e narrador) se dirige diretamente à audiência:

— E quanto a mim, bem… Voltei a me chamar Eugene. Parei de roubar, mudei completamente. Mas sei qual é a grande questão. Se eu e Rapunzel nos casamos? Fico feliz em lhe dizer que após anos e anos pedindo, pedindo e pedindo… Eu finalmente disse “sim”.
— Eugene…
— Certo, eu a pedi. Será que vamos viver felizes para sempre? Sim, iremos.

"Tangled Ever After" (2012): curta de animação e sequência de Enrolados.

“Tangled Ever After” (2012): curta de animação e sequência de Enrolados.

O casamento pode ser adiado, mas é um fato!

O casamento pode ser adiado, mas é um fato!

Em Valente, ainda que o casamento como elemento central da trama seja utilizado de maneira bastante original (como recusa da protagonista) e, de fato, não ocorra durante o filme, a personagem parece se satisfazer com um desfecho que apenas o adia. A idéia de casamento é confrontada, mas jamais negada.

V. Especificidades e adaptações.
Em resumo, fazendo uso desses dois elementos como síntese das questões que estamos abordando, fica explícito que diversas transformações existem nas “Novas Princesas”, mas a continuidade é uma força muito mais intensa. Todos os problemas centrais do modelo expresso nos filmes “clássicos” permanecem nas “Novas Princesas”, ainda que, em alguns filmes, diluídos.

Tal conclusão parece ser óbvia também para a própria Disney, que enquadra o conjunto como perfeitamente homogêneo. Isso ocorre não apenas porque a empresa tem interesses diversos nessa homogeneização, mas porque a atinge apenas com pequenas adaptações.

Para exemplificar, basta recordarmos dois casos em que essas adaptações ocorreram: os redesenhos de Merida e Mulan. Por ocasião de suas adições ao conjunto, Merida e Mulan foram redesenhadas para “combinar” com as outras princesas. Ambas ocasiões redundaram em uma forte reação dos fãs e, após alguma polêmica, a Disney se retratou e alterou o redesenho de Merida. É interessante notar, contudo, que a reação do público não foi pela inclusão de Merida ou Mulan no conjunto das Princesas Disney mas, especificamente, no resultado imagético dessa inclusão. É evidente, portanto, que ao mesmo tempo em que Merida e Mulan são vistas pelo público como princesas diferentes (que rejeitam o design tradicional), permanecem sendo princesas. Ao fim e ao cabo, o que importa é a manutenção do conjunto, o qual é capaz de agrupar todas as princesas e escamotear, com ações muito pontuais, as suas pequenas especificidades.

Lógica de conjunto.

Lógica de conjunto.

Mas como explicar as especificidades de Mulan e Merida e o retorno ao tradicionalismo representado por Tiana e Rapunzel? Mulan, conforme já observamos, não apenas é um dos filmes que marcam uma tentativa de transformação nas animações Disney, como o filme foi lançado antes da franquia “Princesas Disney” ser criada. Nesse sentido, sua adição ao conjunto é algo totalmente externo, bastante posterior ao lançamento do filme. Algo semelhante ocorre com Merida: produzida pela Pixar, seu distanciamento em relação as demais Princesas é tão grande que a própria diretora veio a público para criticar seu redesenho, apenas a face mais óbvia de sua inclusão no conjunto. Tiana e Rapunzel, ao contrário, são produções Disney, criadas após a franquia ter se provado extremamente lucrativa e, naturalmente, se esforçam para resgatar a fórmula do sucesso dos filmes anteriores.

VI. Felizes para sempre?
O resultado da análise acima é necessariamente ambíguo: por um lado, novas princesas para um novo tempo; por outro lado, a permanência de elementos tradicionais e conservadores no núcleo dos filmes.

Porque as Princesas se transformam? Conforme argumentei no segundo texto dessa série, todos os produtos culturais são historicamente determinados. As Princesas do século XXI mudam porque precisam dialogar com uma audiência que também mudou. Porque as Princesas, em tantos aspectos, permanecem as mesmas? Exatamente pelo mesmo motivo. Sendo historicamente determinados, nascidos do mesmo quadro de referências que informa cada um de nós, as “Novas Princesas” são fruto de uma sociedade que reconhece cada vez mais a liberdade das mulheres mas, ao mesmo tempo, permanece discriminando, prendendendo e matando essas mesmas mulheres.

Mas existem razões para algum otimismo: ainda que continue promovendo as princesas clássicas, a dinâmica do conjunto – conforme demonstrei acima – indica diversas contradições e algumas transformações. Mulan e Merida podem ser pontos ligeiramente fora da curva, mas esses momentos somados à última animação lançada – Frozen (2014), podem representar uma efetiva mudança de curso. O que não devemos perder de vista é que a lógica do conjunto se sobrepõe a cada filme individual, logo, apenas uma transformação que seja desenvolvida e aprofundada ao longo de vários filmes representaria uma efetiva transformação da franquia. Nesse sentido, a pressão crítica continuamente exercida por feministas sobre a Disney deve ser diretamente creditada como um elemento dessa transformação.

Quando as protagonistas não estão no centro do pôster.

Quando as protagonistas não estão no centro do pôster.

VII. Princesas e infância.
Na conclusão do primeiro texto reconheci como um objetivo irreal a supressão completa do contato das crianças com essas personagens. Apontei, contudo, que essa animações, ao desenvolverem modelos simples, abriam as possibilidades para que as próprias crianças desenvolvessem críticas simples a esses mesmos modelos. Acrescento agora que a crescente contradição entre transformação e permanência nos últimos filmes aprofunda esse processo e fornece às crianças oportunidades cada vez mais adequadas para aprofundar as críticas que elas próprias podem desenvolver.

Ao contrário do que sugeriu um comentarista, a principal crítica aos filmes das Princesas não é que “alienam as crianças” mas, justamente o oposto, reproduzem modelos sociais e padrões de comportamento que difundem um discurso de integração e reprodução do mundo do existente. Mas é apenas no seio do existente que pode surgir o novo. E é justamente a produção do novo, do inesperado, do desconcertante, o elemento mais fundamental do desenvolvimento das crianças. Apresentadas à diferença, às ferramentas da crítica e às possibilidades de transformação, as crianças se apropriam do velho e criam o novo. As “Princesas Disney” podem servir aos dois propósitos: funcionam como um modelo de integração em um mundo misógino e desigual; mas podem funcionar também como objeto de desenvolvimento crítico de sua própria audiência, ainda mais quando o próprio conjunto explicita cada vez mais suas contradições internas. Aos pais cabem a orientação e um primeiro ato de desnaturalização da realidade representada nas animações: Porque os Príncipes não trabalham? Porque as Princesas precisam que alguém as salve? Porque a história termina com os casamentos? Etc. Às crianças cabe a formulação de respostas à perguntas como essas e de novas questões.

O resultado de um movimento como esse é a reapropriação (e a necessária transformação) das histórias pelas próprias crianças. E assim, são as crianças que fazem aquilo que a Disney demonstra ser incapaz, a transformação do existente em algo novo.

Sobre Paulo Pachá

Mestre em História pela UFF. Professor, comunista e medievalista.
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2 respostas para “Vivendo felizes para sempre!”: Transformações e continuidades nas “novas” Princesas Disney

  1. Eu fiquei bem impressionada com Frozen, que você mencionou mas não deu spoiler, hehe. O casamento aparece também no filme, tem uma questão aristocrática bem marcada, mas a protagonista é genial, e o desfecho do filme… Acaba sendo uma história sobre amor entre irmãs, né. O que, em termos de crítica feminista, é muito interessante não só por deixar o tema do casamento como algo lateral, mas porque reforça um laço entre mulheres que em geral não existe: as mulheres disputam entre si, são “invejosas”, etc. É como aquele ditado “as mulheres não se arrumam para os homens, mas para outras mulheres”, pra despertar inveja e tal.
    Essa coisa da disputa entre mulheres também aparece de uma forma muito interessante em A Princesa e o Sapo, mas mais lateralmente.
    [SPOILER] Eu fiquei de cara quando vi que a amiga rica da Tiana não ficou puta com ela pq ela se apaixonou pelo príncipe e “roubou” suas chances de se casar com um, como era seu sonho. Ela deu mó força e não teve sinal de problemas! Achei interessante como isso foi tratado com naturalidade, normalmente seria um gancho óbvio pra tornar a amiga rica uma antagonista. Até hoje não me desce muito bem que ela tenha lidado tão bem com a situação, hehe.

  2. Pingback: Em defesa das princesas da Disney: Bela | redemunhando

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