O sindicalismo sente as correntes que o prendem

Texto de Valéria Lopes*.

 Até bem pouco tempo falar de sindicalismo era algo ultrapassado. Anos atrás quando manifestei interesse em pesquisar sindicalismo, me deparei com uma descrença geral na relevância do objeto que havia escolhido, com argumentações que equiparavam as pesquisas sobre o movimento sindical a “chutar cachorro morto”, além de óbvia persuasão para que mudasse para algo mais “atual” e “relevante”. Ainda assim insisti, em parte porque (para além da minha própria teimosia) ao iniciar a docência nas escolas públicas, eu me inseria também no movimento sindical da educação.

 Passei os últimos anos tentando conhecer a história do movimento sindical, me debruçando sobre as múltiplas formas assumidas pelo sindicalismo a fim de encontrar os elementos mais basilares da organização de autodefesa dos trabalhadores na ordem capitalista. Nesse ínterim me deparei com um relativo consenso entre os estudiosos do sindicalismo: a fragmentação da classe trabalhadora era um elemento motivador das dificuldades de organização do nosso tempo. Era necessário superá-la, diziam meus pares e eu concordava. Ao fim concluíamos: era necessário que o movimento sindical retomasse sua direção revolucionária já que, tal como Marx havia afirmado ainda no século XIX, esta era a única forma de superar os limites economicistas do sindicalismo e elevá-lo ao nível da luta política contra a ordem capitalista – a luta de classes à qual deveria se somar. Em síntese, esse era o sentido da ação sindical que lamentávamos perdido nas décadas do avanço neoliberal, dispostos a fazer reviver embora não soubéssemos como.

Garis do Rio de Janeiro em greve.

Garis do Rio de Janeiro em greve.

 De fato, os momentos em que o movimento sindical se tornou mais importante pra luta de classes foram aqueles em que a luta corporativista por melhores salários e condições de vida foi travada sem se constituir como ponto máximo da estratégia dos trabalhadores, mas ao contrário esteve vinculada a um projeto político do qual estes mesmos trabalhadores eram sujeitos. Este foi o caso do novo sindicalismo brasileiro nos anos 70 e 80. Entretanto, o refluxo das lutas dos trabalhadores brasileiros diante do avanço neoliberal nas duas últimas décadas significou um retrocesso das lutas sociais em geral, fossem pelas necessidades salariais mais imediatas ou por um projeto político de sociedade.

 Pois bem! O movimento sindical brasileiro, após um largo período de baixa atividade se moveu, como o demonstram a multiplicação das greves que têm se estendido pelo Brasil nos últimos anos. Nos ecos dos gritos das ruas, o movimento sindical se moveu e sentiu as correntes da institucionalidade burguesa a se exercer através do arbítrio do poder judiciário – dentre os casos mais recentes destacam-se no RJ os professores e os rodoviários e em SP os metroviários, todos com suas respectivas greves decretadas ilegais pela Justiça do Trabalho entre os meses de maio e junho de 2014 – e da burocratização do movimento que se reflete no vasto contingente de direções sindicais que apossadas do aparelho sindical atuam de maneira alheia e até mesmo contrária àquelas que deveriam representar, além da fragmentação das forças de organização classista expressas nas competições político-partidárias e da fragmentação da classe trabalhadora em si. De todo modo, cabe-nos destacar que a reascensão das lutas sindicais não foi de forma alguma motivada pela atuação das instâncias tradicionais do sindicalismo, mas constituem um rebatimento das manifestações de massa nas instâncias organizatórias da classe trabalhadora.

 Talvez o principal indicador desse “mover que sente as correntes” esteja nos conflitos entre base e direção, que presenciamos em casos recentes nas greves de diversas categorias. Diante da ausência de combatividade das direções sindicais é a própria base sindical que têm promovido greves, pressionando suas direções em alguns casos e em outros em aberto conflito e ruptura com as mesmas. Este elemento pode ser observado no percurso da greve dos rodoviários do município do Rio de Janeiro, que se estende desde que a negociação salarial entre SINTRATURB (Sindicato dos Motoristas e Cobradores de Ônibus da cidade do Rio de Janeiro) e Rio Ônibus foi rejeitada por grupos dissidentes da base dos rodoviários que não aceitaram o acordo firmado por seu sindicato. De um modo parecido, também os garis da Comlurb na greve histórica durante o Carnaval de 2014, afirmando não se sentirem representados pelo SEEACMRJ (Sindicato dos Empregados de Empresas de Asseio e Conservação do Município do Rio de Janeiro) decretaram greve à revelia de sua direção e saíram vitoriosos. E até mesmo em sindicatos de tradição combativa como o SEPE (Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do RJ) podem-se sentir as mudanças na direção política do movimento em função da pressão exercida pela radicalização de frações atuantes da base dos trabalhadores. Os anseios de luta da classe trabalhadora vêm contrariando suas direções sindicais e, inclusive, “passando por cima” destas.

Movimento dos rodoviários.

 Passado um ano das manifestações de massa que ganharam as ruas do país, a disputa pelo significado do movimento permanece, bem como apenas se iniciaram as tentativas de entendê-lo e caracterizá-lo. Entre estes esforços também se inclui considerável hostilidade que se estende desde grupos conservadores, tais como o conglomerado midiático que desde o início se lançou numa campanha deliberada de criminalização destas manifestações, até parcelas da esquerda tradicional, que veem confrontados seus referenciais de participação e de representação política. Em geral, diz-se que as mobilizações carecem de organização, razão pela qual estariam destinadas a entrar em declínio. Para confirmar tal prognóstico bastaria que se observasse a quantidade decrescente de manifestantes ou a desordem das massas, ou ainda a falta de consciência de classe que caracterizariam estes movimentos. Em tudo isso se oculta o fator fundamental de um possível esvaziamento das ruas: não se trata tanto de carência de organização, mas da violência de Estado dentre tantos fatores possíveis. E ainda assim as manifestações persistem! Muito embora, as correntes estejam se mostrando extremamente desafiadoras.

 Às vésperas da Copa se intensificam as críticas lançadas contra as manifestações e greves que vêm se multiplicando neste período, reunidas sob o mote “não vai ter copa”. E afinal, o que tem a Copa a ver com as condições de trabalho mais permanentes dos brasileiros para que, de repente, surjam tantas greves em diversos setores da economia? Cabe-nos contribuir para esclarecer tal questão. É através da ação sindical que os trabalhadores reivindicam sua parcela dos frutos da expansão capitalista – a que lhe cabe sob a forma dos salários -, e o poder de barganha dos trabalhadores anda em alta neste período quando, em plena Copa do Mundo mais do que nunca, os trabalhadores são imprescindíveis. Deste modo, ainda que estas greves pareçam confusas e carentes de orientação estratégica, elas são a própria expressão do senso de estratégia dos trabalhadores brasileiros.

 Sustentamos então que, para além dos destinos destas mobilizações, estas já têm exercido efeitos importantes que nos caberá apontar neste espaço. Quais foram de fato, até o presente, os efeitos gerados pelas novas mobilizações populares urbanas para a luta de classes?

prof Cabe retomar dois elementos presentes na luta de classes que se destacam na obra de Rosa Luxemburgo e que tem tudo a ver com as questões levantadas: espontaneísmo e organização. Em primeiro lugar, as recentes mobilizações têm sido caracterizadas como espontaneístas e, embora tal termo seja utilizado de forma pejorativa, é justamente o espontaneísmo deste movimento que vêm demonstrando potencial de mobilização das massas. Em segundo lugar, trata-se de repensar a organização da classe trabalhadora no século XXI. Se tomarmos como exemplo o olhar atento de Rosa Luxemburgo sobre as novas formas de mobilização das massas do seu tempo (as greves de massa apareciam em 1905 na Rússia como elemento determinante da luta de classes que estenderia até a Revolução Russa) nos caberá uma necessária e urgente reflexão sobre a organização política da classe trabalhadora no século XXI. Muito se fala da necessidade de superação da fragmentação e de reconstrução da capacidade de organização da classe trabalhadora, mas pouco se reconhece do potencial apresentado até aqui pelas mobilizações recentes, com suas novas formas de mobilização e organização. São justamente elas as grandes motivadoras das lutas anticapitalistas que presenciamos hoje no Brasil, são a fonte do movimento, da ação e da nova consciência política que vemos surgir no nosso tempo. E a despeito desta ampla desconfiança gerada (até mesmo entre frações da esquerda brasileira) e de todas as tentativas de criminalização (por parte da grande mídia e do Estado), uma nova consciência política anticapitalista surge no século XXI e se legitima no seio da classe trabalhadora, provocando mudanças expressivas na cultura política do povo brasileiro, tensionando o status quo, compelindo ao movimento todo o complexo cenário da política nacional e impulsionando a resistência dos trabalhadores brasileiros. Enfim, tudo se move, tudo se acirra e muito das contradições que nos tangem se revela. Movimento! E como a própria Rosa Luxemburgo nos diz: quem não se movimenta não sente as correntes que o prendem.

* Valéria Lopes é professora de Sociologia do Colégio Pedro II, mestre em Serviço Social pela UFRJ, autora da dissertação “Crise do sindicalismo e crise do capital: análise crítica da luta sindical em defesa do trabalho na ordem capitalista”.

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2 respostas para O sindicalismo sente as correntes que o prendem

  1. ray disse:

    muito bom, terias outros artigos nesse sentido ((crise do) sindicalismo e nova crise/composição do capitalismo)?

    vlw

  2. Pingback: O que ainda resta de Junho… Uma análise das Jornadas, dois anos depois | Capitalismo em desencanto

Comentários