A desmilitarização das polícias e o questionamento às bases da dominação de classes no capitalismo contemporâneo

A polícia apresenta suas armas

escudos transparentes, cassetetes, capacetes reluzentes

E a determinação de manter tudo em seu lugar”

Paralamas do Sucesso, Selvagem (1986)

Jornalista da TV Folha atingida por bala de borracha disparada pela PM

Jornalista da TV Folha atingida por bala de borracha disparada pela PM
Crédito: Diego Zanchetta / Estadão Conteúdo

Nas grandes e prolongadas mobilizações sociais que marcaram o Brasil em 2013, a determinação policial para manter tudo em seu lugar colaborou imensamente para que muitas coisas não permanecessem imóveis. Na repressão às manifestações, ao agregar aos tradicionais escudos, cassetetes e capacetes, outros artefatos de maior complexidade, como as chamadas bombas de efeitos moral, as bombas de gás lacrimogêneo e as balas de borracha, as polícias militares de diferentes estados colaboraram não apenas para que os atos iniciados em protesto contra aumentos das tarifas dos transportes públicos multiplicassem suas dimensões, como também ampliassem sua pauta, colocando a própria ação policial em sua alça de mira. De forma emblemática, é possível dizer que com a bala de borracha que alvejou, no olho, a jornalista do Grupo Folha um dos principais pilares da mídia empresarial no país –, abriu-se um novo campo de visão sobre a atuação das polícias militares brasileiras.

Em parte, essa abertura decorreu da capacidade da repressão policial às manifestações produzir certo grau de homogeneização das experiências de diferentes setores da população. De um lado, é evidente que as parcelas mais pauperizadas da classe trabalhadora e seus segmentos organizados em movimentos sociais já encontram-se habituados com a truculência e a arbitrariedade que caracterizam a ação cotidiana das PM’s. De outro, para as fatias melhor remuneradas da classe trabalhadora e o contingente da classe média que afluíram para as manifestações, essas mesmas truculência e arbitrariedade – ainda que em doses bastante reduzidas se comparadas com aquelas reservadas para os bolsões de pobreza – se não constituíram novidades, passaram, ao menos, a ser encaradas de uma nova perspectiva ao tornarem-se, também eles, seus alvos.

Protesto contra ação policial que deixou dez mortos no Complexo da Maré Crédito: Marcos de Paula / Estadão Conteúdo

Protesto contra ação policial que deixou dez mortos no Complexo da Maré
Crédito: Marcos de Paula / Estadão Conteúdo

No caso do Rio de Janeiro, esse processo é especialmente significativo. No final de 2010, apenas dois anos e meio antes da explosão de junho de 2013, o governador Sérgio Cabral (PMDB) foi reeleito em primeiro turno com 66% dos votos válidos. Em sua campanha, o grande trunfo apresentado foi o programa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP’s), implantado em diversas favelas da cidade sob a justificativa de expulsar o tráfico armado de drogas dessas áreas, recuperando a soberania estatal sobre territórios e garantindo o acesso dos moradores locais à cidadania. Entretanto, na prática, as UPP’s atuam no sentido de produzir condições para o avanço da mercantilização do espaço das favelas e de variados aspectos das vidas de seus habitantes, além de instalar uma gestão policialesca de sua sociabilidade e seu cotidiano. A despeito desses efeitos – ou precisamente por conta deles… –, a conjugação da propaganda oficial com sua contraparte midiática resultou na construção de um significativo apoio social às UPP’s. Naquela conjuntura, somava-se a isso a verdadeira glorificação de que foram objetos o BOPE (Batalhão de Operações Especiais da PM do Rio de Janeiro) e sua lógica da “guerra ao tráfico” a partir do impacto dos filmes da franquia Tropa de Elite, evidenciando o pendor fascistizante de parcela da classe média.

Capitão Nascimento: o personagem da franquia "Tropa de Elite" que se tornou símbolo da defesa da violência policial por parcela da classe média

Capitão Nascimento: o personagem da franquia “Tropa de Elite” que se tornou símbolo da defesa da violência policial por parcela da classe média

Diante desse quadro recente de apresentação das UPP’s como responsáveis pela elevação da “autoestima da cidade” e do BOPE como último bastião da moralidade e protetor dos “cidadãos de bem”, a explosão de questionamentos à atuação da PM nas manifestações iniciadas em junho evidencia um importante deslocamento na percepção dessa instituição, ainda mais impulsionado pelo caso Amarildo, um ajudante de pedreiro assassinado por policiais lotados na UPP da Rocinha. Nesse processo, adquiriu maior visibilidade uma bandeira há muito sustentada por militantes e organizações do campo da esquerda, especialmente aqueles atuantes na seara dos direitos humanos: a desmilitarização das Polícias Militares.

Embora possa ser apresentada com variadas nuances, de modo geral, essa reivindicação aparece articulada a um conjunto de medidas para a reorganização das forças policiais, que giram em torno da proposta de unificação das polícias civil e militar, de forma a superar o abismo atualmente existente entre patrulhamento – a cargo da PM – e investigação – responsabilidade da Polícia Civil. De acordo com diversos estudiosos do tema da segurança pública, a racionalização da ação policial advinda dessa unificação tenderia a ampliar sua capacidade de solução dos crimes.

Reivindicação de extinção da polícia militar em manifestação no Rio de Janeiro em 2013

Reivindicação de extinção da polícia militar em manifestação no Rio de Janeiro em 2013

O caráter civil dessa polícia unificada, por sua vez, seria justificado, principalmente, pela necessidade de afastá-la da lógica de combate que rege a PM, em função de sua atribuição constitucional de instituição auxiliar ao Exército Nacional. Voltadas para a atuação no interior de nossas fronteiras – ao contrário das Forças Armadas –, as PM’s passam, então, a concentrar sua atuação repressiva naqueles que são considerados “inimigos internos” e/ou potenciais ameaças à ordem econômico-social e ao regime político, com destaque para os movimentos sociais e os trabalhadores mais pauperizados, diuturnamente criminalizados. Conforme evidenciado pelos acontecimentos desse ano, no entanto, esse leque de alvos pode ser ampliado na medida em que novos setores sociais ou processos políticos questionem a ordem e o regime, mesmo que à custa da redução na prática de direitos legalmente previstos por esse mesmo regime, como o de manifestação.

Outro argumento importante que tem sido constantemente mobilizado em defesa da proposta de desmilitarização da polícia gira em torno da necessidade de se garantir aos trabalhadores dessa instituição a liberdade de organização política, algo vedado no âmbito das corporações militares. Tal organização permitiria, em primeiro lugar, a articulação sindical dos policiais, abrindo campo para lutas em defesa de direitos trabalhistas. De forma ainda mais significativa, a auto-organização dos trabalhadores policiais também poderia redundar em um fortalecimento dos questionamentos internos à própria polícia no que se refere à lógica beligerante que preside sua atual atuação, conforme já exposto.

Quanto a isso, é preciso ter em mente que parte significativa dos que ingressam nas PM’s – sendo oriundos, em larga medida, dos estratos mais pauperizados da própria classe trabalhadora – não o fazem por qualquer tipo de vocação particular, mas, sim, premidos pelas contingências do mercado de trabalho nacional, uma vez que a carreira policial garante estabilidade empregatícia. São os mecanismos formais e informais – como os desumanos e desumanizadores treinamentos a que são submetidos todos os ingressantes – da própria corporação que produzem a mentalidade belicista que grassa entre os policiais. Tais mecanismos, no entanto, não isentam a corporação de contradições internas, ainda que o belicismo que orienta a corporação como um todo seja empurrado ladeira abaixo ao longo de toda a hierarquizada cadeia de comando das PM’s – num formato tipicamente militar – até os soldados que fazem o “trabalho sujo” nas ruas. São precisamente esses que enfrentam a complexa tarefa de reprimir cotidianamente segmentos sociais muito próximos de suas próprias origens, além de serem frequentemente os únicos a enfrentarem punições nos casos em que se verificam os cinicamente denominados “excessos” – que, na verdade, constituem o coração da própria atuação policial em seus moldes atuais –, preservando a oficialidade que dirige a instituição e sua lógica militaresca.

Apontar essas contradições e as possibilidades de sua superação – ainda que parcial – por meio da desmilitarização não implica em concordar com a noção de que tal medida constitua qualquer tipo de bálsamo milagroso. Afinal, conforme muito bem argumentado por Eduardo Rodrigues em texto recentemente publicado aqui no Capitalismo em Desencanto, a militarização constitui um dos pilares da dominação de classes no capitalismo contemporâneo, ultrapassando em muito a ação das PM’s. Dentre diversos outros exemplos dessa tendência militarista, é possível mencionar o emprego, por 19 meses, das Forças Armadas (FFAA) na instalação das UPP’s do Complexo do Alemão, os projetos de utilização das próprias FFAA no aparato de segurança pública relativo à Copa do Mundo de Futebol de 2014 e, a nível, mundial, a atuação das tropas dos Estados Unidos e de outros países na intervenção sobre o Iraque.

Soldados do exército participam da ocupação do Complexo do Alemão

Soldados do exército participam da ocupação do Complexo do Alemão

Em face da complexidade desse processo e de sua articulação para além das polícias, é evidente que a mera desmilitarização não alteraria o sentido classista da atuação da instituição policial, que permanecerá a serviço da produção das condições de reprodução do capital e da perpetuação do jugo das classes dominantes. Por mais evidente que essa afirmação pareça, nunca é demais lembrar que a polícia é de classe (não à toa, as taxas de solução de crimes contra o patrimônio são muito mais elevadas do que aquelas relativas a crimes contra vidas), porque o Estado é de classe. Sem uma profunda transformação desse, aquela jamais será reorientada em seu sentido social. Não obstante essa limitação, a bandeira da desmilitarização possui um importante potencial para a unificação das lutas de diferentes setores da sociedade, além de constituir uma possibilidade de fissurar precisamente um dos elementos fundamentais do processo de acumulação capitalista contemporâneo. Deixar de fazê-la tremular constituiria, portanto, um grave erro tático para a esquerda revolucionária.

Sobre Marco M. Pestana

Doutorando em História pela UFF. Professor do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES). Cinéfilo frustrado, flamenguista e visceralmente socialista.
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5 respostas para A desmilitarização das polícias e o questionamento às bases da dominação de classes no capitalismo contemporâneo

  1. Giancarlo Sanguinetti disse:

    O erro tático está justamente em defender a “desmilitarização das Polícias”, ao menos quando se analisa a questão da perspectiva dos interesses históricos do proletariado! O autor foi muito feliz nas três primeiras frases do último parágrafo, quando diz que a polícia é de classe, sendo esta militarizada ou não. Disse também ao longo do texto que o Estado burguês sempre utiliza a repressão policial aberta (tortura, mortes, ocultamento de cadáver, ameaça, etc.) nas periferias e contra as “parcelas mais pauperizadas”. Tal violência é ilegal. A questão é que na luta de classes a burguesia nunca se preocupou com a lei, se preocupa somente com a manutenção dos seus negócios. Custe o que custar! Isto colocado, a bandeira de “desmilitariazação das polícias” longe de “constituir uma possibilidade de fissurar precisamente um dos elementos fundamentais do processo de acumulação capitalista contemporâneo”, gera ilusões de que poderia ser diferente, dentro do capitalismo. Com isto geralmente vem a defesa de uma polícia humana, comunitária, que proteja a população e outras ilusões liberais que a pequeno-burguesia compra e defende! A verdade é que para o proletariado, para os “pauperizados”, etc. não existe e nem existirá Estado Democrático de Direito. A pequeno-burguesia pode reivindicar isto, para ela é possível a previsão destes direitos. Não a toda os partidos com “programas” pequeno-burgueses defendem esta bandeira. Não falam de revolução proletária, de ditadura do proletariado, de armamento da população, etc.

    • Giancarlo,

      É evidente que para os dominados – e, principalmente, para suas frações mais pauperizadas -, o Estado de direito jamais poderá ser uma realidade. Essa constatação, no entanto, não deve levar à posição de que as formas segundo as quais se dá a dominação de classes são indiferentes, posto que todas produzem a subalternização dessa parcela da população. Nesse sentido, reivindicar a desmilitarização das polícias abriria a possibilidade do afloramento de uma série de contradições – por meio da sindicalização dos policiais, de uma reorientação de seu papel constitucional, dentre outros exemplos mencionados no artigo -, que carregariam consigo o potencial de transformar, ainda que timidamente, as formas atualmente vigentes de dominação. Ainda que não se tratasse de uma conquista revolucionária em qualquer acepção, é necessário lembrar que a luta de classes se nutre, para além dos grandes saltos, fundamentais, também, de pequenas conquistas. Um bom exemplo disso foi a redução das tarifas conquistada em 2013, que não questionou a lógica de exploração privada do transporte público, nem apontou para a efetivação da tarifa zero universal, mas também não deixou de ser comemorada como um significativo passo no processo de constituição política das classes dominadas.

  2. Giancarlo Sanguinetti disse:

    Marcos Pestana,
    O principal problema é como a questão é colocada. Nenhum organização revolucionária vai se opor a desmilitarização das polícias. Vão, sim, contrapor a bandeira do fim das polícias, entendendo que esta instituição é por essência uma instituição da burguesia para proteger os seus interesses. Já as organizações reformistas pretendem “humanizar” a polícia, criar uma “polícia cidadã” etc. Veja o caso do PSOL: um partido reformista (ainda que no interior existam correntes que falam em revolução, o partido já perdeu esta perspectiva há tempos, se é que um dia a teve) que defende a desmilitarização das polícias e evita, a todo momento, fazer uma análise da sociedade capitalista em que vivemos, da luta de classes etc. gerando ilusões nas classes dominadas de que é possível melhorar o funcionamento do sistema (capitalista) dentro dele próprio! Ou seja, o PSOL e as organizações reformistas do capitalismo se opõe à bandeira de fim da polícia, porque tem como estratégia a reforma do sistema, não sua destruição. Pelo mesmo motivo o Freixo deu as declarações condenando os atos de violência nos atos, defendendo uma posição pacifista, sem fazer a distinção entre a violência reacionária do Estado e a violência revolucionária. Enfim, o erro, no sentido revolucionário, da bandeira de desmilitarização das polícias se evidencia pelo que ela não diz (mas fica subentendido)!!

    • Giancarlo,

      Entendo que você traga à baila o exemplo do PSOL, pelo caráter gritantemente reformista da atuação de suas principais figuras públicas e pela trajetória de acelerada degeneração do partido, que inicialmente foi pensado como um potencial pólo de reorganização da esquerda combativa. Entretanto, ao centrar sua argumentação nesse exemplo, você enfatiza o caso de uma defesa da bandeira da desmilitarização que se articula com um projeto predominantemente reformista que, como você mesmo disse, prefere ocultar a luta de classes.
      No meu artigo, no entanto, argumentei em bases diferentes, tentando mostrar como a defesa dessa bandeira da desmilitarização pode, sim, se coadunar com uma análise da realidade social e uma práxis política revolucionárias – que, ao contrário da posição majoritária no PSOL, não escamoteie a luta de classes. Nesse sentido, posso dizer que concordo plenamente com uma parte importante do seu argumento: de fato, a defesa reformista da bandeira da desmilitarização não passa disso, conformando uma posição – e, aqui, peço perdão pela tautologia – evidentemente reformista.
      Digo isso porque não enxergo nenhuma contradição insolúvel nas defesas da desmilitarização e do fim das polícias, podendo ambas serem articuladas numa pauta revolucionária. Para isso, no entanto, é preciso que o processo revolucionário – conforme argumentei no artigo e no meu comentário anterior – seja entendido com um grau de relativa complexidade, para além das vontades dos agentes organizados. Trocando em miúdos, não basta que a vanguarda do movimento defenda o fim das polícias se não for capaz de produzir uma adesão de massas a essa consígnia. É preciso, pois, pensar como se pode fazer a passagem do quadro atual para outro, em que a reivindicação do fim das polícias produza um eco social capaz de efetivamente pautar essa extinção e efetivá-la. Nesse processo político, me parece que a defesa da desmilitarização – desde que conduzida nos quadros de uma política revolucionária, que não busque vender a ilusão de um capitalismo humano, mas que produza condições potencialmente superiores para o desenvolvimento da luta de classes – pode constituir um importante passo.

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