O programa Altas Horas, que foi ao ar no último dia 5, teve como tema principal a discussão sobre feminismo e machismo. Apesar do péssimo formato – que contou com a participação de convidadas famosas e com uma plateia inteiramente masculina, como se esse debate interessasse mais aos homens do que às mulheres –, até que o programa gerou uma discussão importante sobre a liberdade sexual feminina. As cantoras Pitty, Anitta e Flora Matos expuseram suas diferentes visões sobre o lugar da mulher na sociedade e chegaram a divergir em alguns pontos (o que é normal em qualquer debate).
O caso, no entanto, ganhou algum destaque como mais um desses barracos entre famosas desesperadas por atenção, que evidenciariam uma suposta rivalidade natural entre as mulheres, como se elas não fossem capazes de discordar e de argumentar racionalmente numa discussão. Essa visão também esteve presente, de forma mais sutil, nas reações de algumas mulheres que se reivindicam feministas, mas que adoraram ver a Pitty “detonando” a Anitta, por conta de suas declarações ainda fortemente impregnadas da lógica machista. Esqueceu-se do papel conscientizador que a crítica feminista deveria ter, para se assumir uma postura combativa contra uma mulher não conscientizada.
A discussão sobre feminismo já tinha aparecido na Globo no programa Na Moral (do qual a cantora Anitta também participou como representante do feminismo), mas o tema voltou a pipocar na programação da emissora logo depois da performance de Beyoncé no VMA (a cerimônia de premiação mais importante da MTV) durante a qual ela fez uma significativa referência ao feminismo. No auge de sua apresentação – marcada por um figurino e por coreografias sensuais –, a cantora exibiu, em letras gigantes, um trecho do discurso de Chimamanda Ngozi Adichie (uma escritora feminista nigeriana), que foi sampleado na faixa Flawless.
A atitude de Beyoncé foi recebida pela mídia como sua adesão indiscutível ao feminismo, principalmente depois que ela divulgou um artigo em que denunciava a desigualdade entre gêneros. Isso provocou um debate público sobre a legitimidade do posicionamento de uma cantora que aposta na mercantilização de sua sensualidade como uma das principais características de sua carreira e que já reproduziu, em suas músicas, padrões comportamentais e papéis de gênero baseados em relações machistas. Algumas críticas afirmaram, ainda, que o ato foi meramente comercial, com o objetivo de vender um “feminismo light”. Por outro lado, outras avaliações destacaram a importância de uma artista pop mundialmente famosa endossar a palavra “feminista”, que chegou a ser ameaçada de ser banida da revista Time e que foi publicamente rejeitada por outras mulheres famosas.
Beyoncé é um produto da indústria pop e, como tal, reproduz tendências estéticas, padrões comportamentais e valores morais dominantes (isso não quer dizer que a indústria não tenha espaço para artistas contra-hegemônicos, mas esse já é outro assunto). Sua aparência física é adaptada aos padrões de beleza do momento e algumas de suas músicas, de fato, reforçam o papel submisso das mulheres (como em Single Ladies e Naugthy Girl, por exemplo). Além disso, a ideia de que a indústria pop queira vender um feminismo menos contestador (e, por isso, mais facilmente adaptável às relações dominantes) me parece bastante plausível. Mas, apesar disso, é preciso questionar o que levou uma artista como ela a adotar tal posicionamento feminista.
Uma das coisas que contribuem para manter artistas de sucesso em evidência na mídia é a sua capacidade de dialogar com o senso comum e de antever tendências sociais que possam ser adaptadas ao padrão dominante e comercializadas em diversos formatos. Nesse sentido, a atitude de Beyoncé revela que o debate sobre feminismo se ampliou de tal forma, que passou a ser comercialmente interessante para uma artista pop.
Não concordo com a ideia de que os espaços conquistados pelo feminismo tenham atingido um patamar satisfatório, nem acho que devemos aceitar acriticamente o feminismo comercial de Beyoncé (e de outras), como se fosse a única forma viável de divulgar a luta pela igualdade entre gêneros. Contudo, é preciso reconhecer que a atitude de Beyoncé foi impulsionada por um movimento social mais amplo de afirmação do feminismo como um debate público necessário.
É claro que as tendências da indústria pop são bastante voláteis, são contraditórias e mudam numa velocidade cada vez mais alucinante. Isso significa que, em pouco tempo, o feminismo pode deixar de ser um tema comercialmente interessante e desaparecer das produções de artistas pop. É por isso que a luta feminista não deve concentrar seus esforços na tentativa de reformar a lógica de funcionamento de espaços em que predominam as relações de opressão. No entanto, num mundo em que pessoas como o deputado Jair Bolsonaro e o presidente turco Recep Erdogan têm o espaço para dizerem o que dizem (só para citar alguns exemplos mais “banais”), acredito que seja muito ruim abrir mão das oportunidades que surgem para reiterar e sedimentar o debate sobre questões sociais progressistas, como é o caso do feminismo.
De Aretha Franklin, passando por Madonna e Spice Girls até chegar em Beyoncé: todas são produtos culturais produzidos e comercializados pela indústria pop e, por isso, reproduzem, em algum nível, valores sociais machistas que reforçam a opressão feminina. Todas elas adaptaram sua aparência física aos padrões de beleza dominantes. Em alguns casos, chegaram a reforçar a objetificação da mulher. Além disso, para cada artista que adotou uma postura mais crítica aos papéis de gênero, existiram muitas outras que aceitaram e que difundiram um comportamento complacente com a submissão feminina, mesmo que, em algum ponto de suas carreiras elas tenham se “rebelado” (como Britney Spears, Christina Aguilera e Jennifer Lopez).
Mas já pensaram em como a música “Respect”, cantada por Aretha Franklin no final da década de 1960, foi importante para o empoderamento das mulheres negras? E dá para imaginar a libertação da sensualidade feminina sem a Madonna? (Lembrando que a sensualidade masculina nunca foi recriminada. Ninguém questiona, por exemplo, a expressão sexual do rebolado de Elvis Presley) E a postura e as canções das Spice Girls, que empoderavam as mulheres e que destacavam valores como a sororidade (como nos vídeos das músicas Wannabe e Holller, nos quais a aliança feminina é destacada)? E quantas pessoas saberiam do discurso de Chimamanda sem a performance de Beyoncé? Muitas vezes, esse é o primeiro ou o único contato de muitas mulheres com um discurso ligeiramente distinto.
As artistas citadas aqui não representam um novo feminismo e suas atitudes não devem ser tomadas como limites para a luta feminista. Os limites de seus posicionamentos devem ser evidenciados (inclusive para mostrar que o feminismo é algo muito mais profundo do que suas práticas e discursos revelam), mas a crítica precisa ser mais pedagógica, de modo que estimule mais pessoas a se reivindicarem feministas. Até porque, as estrelas pop servem de modelo para várias artistas regionais, nos quatro cantos do mundo – o que gera um efeito propagador imensurável. Inclusive, eu mesma já escrevi um texto mostrando que a cantora Anitta (que, como foi dito no começo desse texto, revelou um ranço machista muito forte em seu discurso no programa Altas Horas) tem como prática a replicação de elementos da produção de Beyoncé.
Se o feminismo foi incorporado pela indústria pop (ao menos, por enquanto), cabe a nós, feministas, a tarefa de romper os limites impostos, até o fim da opressão de gênero. E a superação da lógica de funcionamento da indústria pop certamente deve fazer parte desse processo.
Eu gostei muito desse texto aqui sobre a questão do feminismo da Beyoncé e de outras cantoras pop que tem essa pegada sexy: http://noisey.vice.com/pt_br/blog/beyonce-feminism-new-album