Um marxismo interseccional é possível? Pontapé inicial para um debate.

Creio que não há nenhuma novidade em afirmar que, nas últimas décadas, as questões ditas “específicas”, de “minorias” ou “identitárias” têm ocupado um lugar cada vez mais importante nos debates da esquerda. Não foi à toa que o primeiro dossiê elaborado por nós aqui no blog teve “identidade” como tema. De modo geral, os textos do dossiê procuraram situar essas questões dentro do pensamento e da práxis marxista, relacionando-as com a questão de classe, central para aqueles que se vinculam ao marxismo. Pois bem, peço a benção de Tim Marx (e, por que não, do próprio Karl) para convidar os leitores a uma reflexão um tanto espinhosa: será que tudo, no fim das contas, é mesmo fundamentalmente uma questão de classe? 

Militante dos Panteras negras. A pintura na parede diz: "Partido Panteras Negras para auto-defesa"

Militante dos Panteras negras. A pintura diz: “Partido Panteras Negras para auto-defesa”.

Mas vamos com calma. Antes de tentar responder essa questão, cabe nos perguntarmos sobre de onde ela vem. Muitos dos movimentos ditos “específicos” ganharam força a partir da década de 1960 (vista com frequência como um momento de “explosão” dos pós-modernismos). É bastante comum ouvir narrativas de militantes negros, feministas, homossexuais etc. que participavam de movimentos orientados pela questão de classe e que, em dado momento, perceberam que suas questões “específicas” encontravam-se invisibilizadas naqueles espaços. Assim, a partir da experiência da militância na esquerda marxista, essas pessoas passaram a se organizar em espaços específicos e frequentemente tornaram-se críticos dos espaços anteriores. É claro que essa narrativa “clássica” não dá conta do processo histórico como um todo; a formação de movimentos sociais não centrados na questão de classe se deu de maneiras muito diversas e sua relação com os movimentos classistas foi complexa e contraditória — o que possibilitou a existência de organizações antirracistas e feministas alinhadas à direita, por exemplo.

O desenrolar histórico desse processo observou muitas coisas, das quais vale ressaltar um certo essencialismo (de que fala Stuart Hall [1]) em torno do qual essas pessoas puderam se identificar enquanto grupo oprimido. Esse essencialismo talvez seja o grande responsável pelo que se configura hoje como “identidade”, já que o processo de positivar o que a sociedade historicamente estigmatizou como ruim (ser negro, ser mulher, etc.) passou pela afirmação de características sociais como sendo essenciais de determinado grupo. Por exemplo: embora a raça exista apenas como uma relação historicamente determinada, já que a sociedade “racializou” certos grupos humanos, a estratégia política antirracista adotada pelos movimentos negros se deu no sentido de afirmar sua existência, exaltando características fenotípicas e culturais da população considerada como negra.

Mulheres negras em passeata.

Mulheres negras em passeata.

Podemos pensar nos movimentos de mulheres negras para materializar tudo isso de que estou falando. Enquanto diversas organizações do movimento negro no Brasil e em outros países teriam surgido a partir de um diagnóstico de que organizações mais amplas de esquerda não contemplavam demandas de combate ao racismo, no interior das organizações antirracistas a desigualdade entre homens e mulheres negras evidenciou-se. Mas a diferenciação interna em um movimento já “específico” foi mais flagrante, nesse caso, dentro do movimento feminista. Enquanto um grupo de mulheres falava em sair do espaço doméstico para ocupar o mundo do trabalho, desconsiderava-se um enorme contingente de mulheres trabalhadoras já exploradas há séculos. Encontramos um exemplo dessa diferença na trajetória da escritora e militante do movimento negro Conceição Evaristo, cuja primeira experiência nos movimentos sociais, antes de qualquer contato com o feminismo ou com o antirracismo, foi em uma organização de empregadas domésticas — função ocupada majoritariamente por mulheres negras.

Angela Davis, militante feminista, antirracista e marxista norte-americana.

Angela Davis, militante feminista, antirracista e marxista norte-americana.

O ponto onde quero chegar com tudo isso é o seguinte: as relações sociais que produzem hierarquias são muito complexas. Se nosso objetivo enquanto militantes de esquerda é destruir as hierarquias sociais, acho que não podemos nos dar ao luxo de perder tempo (des)qualificando as lutas ditas “específicas” como, bem… lutas específicas. É por isso, aliás, que tenho grandes reservas com o termo generalizante “opressões”, no uso que faz dele com frequência em organizações de esquerda marxistas, para ensacar todas as outras coisas que não são “puramente” questão de classe. Outro problema grave, a meu ver, é uma espécie de obsessão em provar que essas desigualdades na verdade são dadas por questões relacionadas à dinâmica estrutural econômica — ou seja, na verdade é tudo questão de classe. A crítica de Raymond Williams e de E. P. Thompson à metáfora marxiana da estrutura/superestrutura, que sugere que política e cultura são fatores igualmente determinantes na realidade, pode ser bastante útil nesse ponto. 

"Não existe tal coisa como uma luta de uma só questão, porque nós não vivemos vidas de uma só questão" - Audre Lorde, escritora e poeta negra norte-americana.

“Não existe tal coisa como uma luta de uma só questão, porque nós não vivemos vidas de uma só questão” – Audre Lorde, escritora e poeta negra norte-americana.

Volto agora à experiência dos movimentos de mulheres negras, no qual a interação entre as questões de raça, de gênero e de classe interagem de modo a produzir uma posição de subalternidade muito característica. Intelectuais feministas negras se depararam com essa realidade complexa e com a consequente necessidade de criar mecanismos de análise para melhor compreendê-la. Assim, do seio do feminismo negro surgiu a interseccionalidade. O termo foi proposto pela norte-americana Kimberlé Crenshaw num documento voltado para a construção de políticas de direitos humanos voltadas para mulheres, considerando sua multiplicidade de experiências e a complexidade estrutural da desigualdade. Embora Crenshaw tenha formalizado a proposta, a necessidade de pensar a complexa relação entre raça, gênero e classe na experiência das mulheres negras foi abordada por diversas intelectuais, como Angela Davis, Patricia Hills Collins e a brasileira Lélia González. O fato dessas discussões serem ainda desconhecidas por grande parte da academia e da militância guarda íntima relação com o lugar que a sociedade reserva às mulheres negras.

Embora o conceito seja aberto a diferentes interpretações e a aprofundamento teóricos novos, ele propõe, no seu cerne, que:

1) classe, raça, gênero, orientação sexual, pertencimento religioso etc. são  eixos de opressão ou eixos de subordinação. Logo, eles não são meros construtores de “identidade”. A preocupação da perspectiva interseccional não é simplesmente a diferença entre pessoas, mas a desigualdade entre elas.

2) Esses eixos de subordinação apresentam-se na realidade material de forma transversal ou interseccional. Isso significa dizer que eles se cruzam e se perpassam criando situações de subalternidade e exploração particulares. Considerando isso, é possível por exemplo que uma pessoa seja simultaneamente privilegiada em alguns aspectos e subalternizada em outros (por exemplo, um homem negro da burguesia ou uma mulher branca da classe trabalhadora).

3) Não há uma hierarquia pré-definida entre os diferentes eixos de opressão. Esse deve ser o ponto mais problemático para os marxistas apegados à classe como o centro fulcral da desigualdade social. Mas em termos das lutas “específicas”, essa colocação é importantíssima ao eliminar a chamada “olimpíada das opressões”, tentativa de medir quem é mais ou menos oprimido dependendo da “soma” de opressões ou de qual tipo de opressão é mais grave.

"Poder ao Povo; Poder e igualdade". Street art de Shepard Fairy.

“Poder ao Povo; Poder e igualdade”. Street art de Shepard Fairy.

Por fim, volto à pergunta com a qual iniciei esse texto: será que tudo é mesmo fundamentalmente uma questão de classe? Não. Mas antes de me atirarem tomates, o que quero dizer é: não é possível compreender e combater a desigualdade olhando só para a questão de classe. Porque tudo é questão de classe e tudo também é questão de gênero e tudo também é questão de raça. Não é estranho ao marxismo reconhecer que a realidade material é complexa e determinada por múltiplos fatores, pelo contrário. A esquerda, portanto, precisa parar de cortar a realidade em fatias — até porque, em geral, nesse processo o gênero e a raça são as gorduras que se joga fora.

Assim, a interseccionalidade, apesar de ser uma palavra difícil, pode ser útil para esquerda de uma forma muito simples e prática. Como sugeriu Kimberlé Crenshaw, basta que a cada situação que analisemos, façamos  perguntas como: Onde está o gênero nisso? Onde está a raça nisso? E podemos adicionar ainda: De que maneira eles se relacionam com a exploração de classe? 

Essa não é uma proposta conciliadora na briga entre os ~marxistas~ e os ~pós-modernos~, mas uma tentativa genuína de pensar como analisar de modo mais completo possível a desigualdade social que experimentamos e pensar na maneira mais radical e profunda de erradicá-la da sociedade. É claro que existem muitas questões a serem problematizadas e discutidas a partir dessa proposta, e eu não poderia abordá-las todas em um só texto. Fica o convite ao debate!

[1] HALL, Stuart. “Que ‘negro’ é esse na cultura negra?”. In: SOVIK, Liv. (org.) Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

Posts relacionados:

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[+] “A necessária liberdade para as identidades minoritárias – debatendo o Multiculturalismo”

[+] “As classes sociais ainda importam?” (partes 1 e 2)

Sobre Bárbara Araújo

professora de história, feminista, anticapitalista, capoeirista e flamenguista.
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18 respostas para Um marxismo interseccional é possível? Pontapé inicial para um debate.

  1. Boa Tarde!
    Só uma questão, me parece que determinadas quadra histórica relacionam com a luta de libertação, ou não, no caso referido não há nada que não possa incorporar esta ou outra luta específica, gosto do termo específico, porquê com mais que a luta contra o racismo seja importante, ela não rompe com a questão de classe, haja vista o que nós presenciamos nos EUA, em que um presidente negro que talvez estaria cerrando fileira contra o racismo conosco, mas quando discutiríamos o capitalismo, aí…a conversa seria outra, o que determinados setores do movimento vem discutindo, não é nada de novo, apesar de importante, quero lembra que um marxista peruano Mariatigui, já fazia este debate a respeito da luta dos indígenas, ou melhor, dos povos originários.

    Algumas considerações a respeito de determinadas categorias falada, luta de classes, é uma categoria fundante do marxismo, sem ela fica um marxismo a meia boca, e pós-modernidade, como categoria é jogar por terra outra categoria fundante do marxismo, que é o materialismo dialético, não existe marxismo sem suas categorias fundantes, ele é vulgarizado e tosco. Quero lembra que o termo marxismo, o próprio Marx não gostou, mas sei que as palavras são carregadas de determinações, no caso do marxismo e voltando a uma questão anterior, marxismo é investigar, ou seja, rever o própria categoria, sua determinações, aproximar do real, factual, por isso caríssimo leitores, não existe relação entre pós-modernidade com marxismo, seja qual for a categoria marxiana usada.

    Amigos, não relacione a pós-modernidade com lutas da década de 60, não tem nada haver, pós-modernidade caríssimos é mais para cá, década de 80, com o fim do socialismo real, aquela papo sobre o fim da história e outras coisitas mais, sobre hierarquia, amigos não descaracterize as categorias envolvidas, os conceitos envolvidos, sejamos sóbrios, não sejamos tolos, não é problema de hierarquia, se é verdade que determinados setores de esquerda deixou de lado lutas específicas, quero afirmar a especificidades destas lutas, mas também, se na luta de classe, repito não conseguimos enxergar o nosso inimigo, a burguesia, aí amigos, estamos fritos, convenhamos, parece que este debate leva-nos a um beco sem saída, repito se é importante que estejamos alerta a qualquer discriminação, seja ela de ordem sexista, racial e etc, também mais importante que vislumbremos quem são os nossos inimigos, meu inimigo não é o trabalhador, mesmo que ele seja preconceituoso, meu inimigo é a burguesia, este sim que constrói estas várias formas de preconceitos, um abraço!

    Marcos Tavares

    • Boa noite!

      Primeiro digo que na ânsia de digitar, não atinei para alguns problemas, na frase: “Algumas considerações a respeito de determinadas categorias faladas…” mas a frente eu falo que luta de classe é categoria fundante, é só pra lembra, luta de classe é uma categoria importante, mas não é categoria fundante, categoria fundante é a teoria do valor que foi criado pelo economista inglês David Ricardo, Marx estudou, e aperfeiçoou, a outra duas são: materialismo histórico dialético e a revolução.

      Marcos Tavares

    • Marcos,
      O que eu quis dizer é que não acredito que lutar unicamente contra a opressão de classes seja suficiente para destruir a desigualdade social e a exploração entre pessoas. Da mesma forma, a luta antirracista que não considere a opressão de classe também não serve, o mesmo vale pra luta antissexista. Então não estou propondo deixar pra trás a luta de classes, apenas considerar essas outras questões em relação com ela.
      Outro ponto que quero comentar da sua fala é quando você diz que não quer transformar o trabalhador em inimigo mesmo se ele for preconceituoso. Bem, o inimigo nunca vai ser o trabalhador (até porque essa categoria abstratamente, fora de algum contexto, não significa muita coisa), o “inimigo” é o próprio “preconceito”, pra usar as expressões que você usou.

  2. Peço licença para invadir o espaço e tentar ampliar a discussão que, para mim, é fundamental.

    Em seu texto, se não interpretei errado, você não excluí a importância das classes sociais, mas as toma em pé de igualdade com as “demais” questões sociais: “Não. Mas antes de me atirarem tomates, o que quero dizer é: não é possível compreender e combater a desigualdade olhando só para a questão de classe. Porque tudo é questão de classe e tudo também é questão de gênero e tudo também é questão de raça. “

    Esse assunto merece reflexão profunda e a análise que você fez tem duas linhas no mesmo raciocínio, embora a segunda não esteja textualmente declarada, ela é parte necessária se se quisermos entender o contexto: 1- A implicação dos fragmentos sociais na luta social; 2- A implicação dessa visão fragmentada das classes na transformação social.

    Primeiro é importante refletir o porquê de classes sociais. Na filosofia materialista histórica as classes sociais são fundantes de nossa sociedade contemporânea ao mesmo tempo em que são formadas por ela. Assim, para analisar a questão de classes precisamos voltar ao átomo do capitalismo, que é a forma de mercadoria. Entendemos o capitalismo a partir do momento em que temos a generalização da forma de mercadoria até o ponto em que o trabalho se tornou também de forma generalizada mercadoria, assim com essa radicalização das formas sociais capitalistas temos um ciclo de recriação do capitalismo onde, ao mesmo tempo, se explora o trabalho assalariado, separando – alienando – as pessoas de seu trabalho e “criando” a mais-valia.

    Dessa forma, entendo o capitalismo como uma forma social que se caracteriza pela exploração generalizada do trabalho, em forma de trabalho assalariado, pelo capital e nesse prisma é impossível retirar a centralidade das classes sociais, sem classes essa forma específica de exploração perde seu eixo, em verdade esse é o princípio da revolução leninista. O que não acontece com os demais “fragmentos sociais” é possível imaginar o capitalismo sem machismo, sem racismo, mas não sem classes.

    Não vou desenvolver mais essa ideia aqui porque isso já deixaria de ser um comentário, mas é de muita relevância.

    Quanto a implicação da identidade há algumas maneiras de analisarmos o caso. Há por parte de alguns movimentos uma ideia simplista de revolução baseada somente em classes, que, em verdade não se sabe onde começa nem como termina, mas esse também é outro debate.

    No próprio marxismo temos autores do que se convencionou chamar de marxismo aberto, avessos à ideia de toada do estado para a transformação social, tidos por uns como reformistas e, por outros, como a nova cara do marxismo, o ponto é que trazem questões interessantes, como identidade, questões de gênero e a fragmentação das lutas sociais.

    Dentre eles destaco dois, Negri e Holloway. Negri tem um conceito “positivo” de identidade, dizendo que devemos explorar esses nossos fragmentos como forma de superação capitalista.

    Holloway tem um conceito “negativo” de identidade. Holloway vê a identidade como uma espécie de prisão capitalista, isso porque a sociedade define o que é homem, o que é mulher, o que é negro, etc, bem como seus papéis na divisão social do trabalho, o que não é um conceito estranho, como disse Simone de Beauvoir: “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. O conceito tem bastante semelhanças.

    É necessário que desenvolvamos o conceito de identidade, mas também, é preciso reconhecer os seus limites e os usos específicos que ela tem na sociedade capitalista. Holloway diz: Somos mulheres, mas somos mais que isso, somos índios, mas somos mais que isso.

    Quando encaramos o conceito da identidade fora da luta de classes, isolado, corremos o risco de perder a orientação do ambiente onde ele se constituí e é justamente essa a questão. Sua constituição. É impossível criar qualquer coisa que não tenha os pés fincados na realidade capitalista porque estamos imersos nela. Assim, um de nossos grandes desafios está justamente em como conseguir reconhecer os grupos sociais, mas também, como superá-los.

    Partimos de uma realidade fragmentada até porque, pelo modo como se deu a construção histórica do capitalismo, os pertencentes à classe do proletariado (nós) somos constantemente postos uns contra os outros. Nosso grande desafio é no sentido de como usar essa luta como unificação e não parar por aí, nesse sentido, a identidade precisa ser negativa. Precisamos nos reconhecer, mas precisamos conseguir dar o passo a diante, senão, como você mesma ponderou, algumas vezes acontecem movimentos que acabam se vinculando à “direita”.

    Por fim, pegando carona em outro texto daqui, sobre identidade, há reflexão lá no sentido de que precisamos “mostrar” para os machistas dentro da esquerda a sua posição machista.

    Em que pese isso seja verdade, só “mostrar” não resolve. Há algumas experiências no mundo como Marinaleda ou a Universidade dos pés descalços que indicam que não é o “mostrar” mas sim o fazer. Quando criam novas experiências sócias, quando as pessoas fazem tudo lado a lado, lutam juntas, constroem juntas, as relações ganham outros contornos. Com isso não quero dizer que com novas relações o machismo automaticamente desaparecerá porque isso não é verdade, mas sim que só é possível pensar em igualdade real – e não burguesa – quando as relações que as fundam partem de situações igualitárias, ou seja, dissolvendo as classes.

    Acho que já escrevi demais. rs

    • Edvaldo,
      Agradeço as suas contribuições e aproveito pra esclarecer que esse texto era meramente introdutório, um convite mesmo ao debate (no qual você embarcou) e que por isso não tinha como desenvolver profundamente nada – até porque se não ia ser uma tese, e não um post de blog.
      Não vou comentar tudo que você falou porque foi coisa à beça, hehe, mas digo o seguinte:
      O que propus aqui foi aprofundar a relação entre as questões de classe, raça e gênero e percebê-las como entrecruzantes na realidade. Então isso vale pra questionar a validade da luta antirracista ou da luta feminista que não pensa a luta de classes.
      Sobre colocar classe, raça e gênero em pé de igualdade, digo logo que isso não é possível porque cada questão é imensamente complexa e qual delas é mais premente é uma pergunta que não faz muito sentido se estou partindo do pressuposto de que, na realidade, na experiência das pessoas, elas se encontram imbricadas.
      Por fim, acho que vale pontuar que da mesma forma que é possível um capitalismo sem machismo e sem racismo, também é possível um socialismo machista e racista – mas não acredito que isso seja um mundo comunista no sentido pleno – com o fim pleno da exploração, com liberdade ampla.

      • Desculpe ter escrito demais, mas acho que percebeu que o assunto me interessa e muito.

        A minha ideia, como disse uma amiga talvez eu tenha que trabalhar a concisão. é de que racismo, gênero e classe parecem e se apresentam na vida das pessoas de forma imbricada, mas atacá-las de forma fracionada pode nos levar a distorções. Você apresentou as distorções que só olhar as classes causam, não olhar as questões de gênero poderia levar a um modelo pós capitalista carregado de preconceitos. Por isso nosso desafio é de como identificar as questões e de como superá-las como classe.

        E concordo com você que essa questão é necessária e subestimada das discussões de esquerda.

        Nem escrevi tanto agora, viu? haha

      • Concordo que não devemos atacá-las de forma fracionada – aí está a interseccionalidade :)
        Mas acaba que analiticamente precisamos separar as questões, senão é muito difícil enxergá-las.
        Não apresentei os problemas de olhar o gênero e a raça sem classe (talvez não tão explicitamente, mas creio que essa ideia esteja no texto) porque considerei que o público leitor do blog é, em geral, um público que já leva em conta a questão de classe.

      • Atacar por todos os lados é um desafio Hercúleo.

        Recomendo mesmo, se você não leu, que leia “Como mudar o mundo sem tomar o poder” de John Holloway.

        Eu não conhecia o blog e gostei bastante, vou ficar de olho nele.

  3. Henrique Nascimento da Silva disse:

    Curti muito seu texto. O militantes da esquerda têm que desconstruir as questões de classes como sendo soberana, e todo o conhecimento da academia tem que ter seu uso na luta!

  4. Amauri Mendes Pereira disse:

    Que beleza Barbara e pessoal do Instituto Búzios! Estou rindo a toa com esse debate mais que necessário entre militantes negros e todxs que assumam consciência social antirracista. Estamos nesse momento organizando um “barato” aqui na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Temos tudo a ver com a discussão que você postou. Anexo o que chamamos discussão preliminar: o textículo que circula motivando o debate.
    PARABÉNS pela qualidade da sua intervenção – bem mais que introdutória – e um abraço fraterno, extensivo a todo mundo que entrou na roda.

    DESCONFERÊNCIA
    PARA UMA CONSCIÊNCIA NEGRA LIBERTÁRIA

    Após as manifestações de junho vale debater sobre rumos e perspectivas do Movimento Negro contemporâneo
    – como contribuir com as transformações necessárias?

    Data: Sábado 9 de novembro de 2013
    Horário: 10h da manhã
    Local: No SINPRO-Rio Regional II (Campo Grande)
    Rua Manaí 180 – ao lado das Fac. Moacyr Bastos – de frente para a estação da SUPERVIA – Campo Grande (RJ).
    Público-alvo: militantes do movimento negro, do movimento de mulheres negras, da juventude negra e parceiros imbuídos de consciência social antirracista.
    Desconferência porque a idéia é questionar limitações e descaminhos na atualidade dos Movimentos Sociais. No caso do Movimento Negro, os desafios postos pela institucionalização da luta contra o racismo, e pela perpetuação das desigualdades raciais-sociais.

    Discussão preliminar

    Seremos capazes de êxito no esforço intelectual e espiritual de nos libertar de vez de correntes e grilhões mentais e, empunhando a “Arma da Teoria”, produzirmos estratégias e condições de atuar com eficácia na superação do viés racial das desigualdades sociais?
    Até os meados do século XX foi preciso superar marcas da escravidão e denunciar o mito da democracia racial. Esforços parcialmente bem sucedidos.
    Há conquistas fundamentais do Movimento Negro, como a vasta capilarização da idéia de Consciência Negra (valorização do ser negro e da Cultura Negra e denúncia ostensiva do preconceito e da discriminação racial), que nos finais dos anos 80 impactou o ambiente intelectual hegemônico, cultural e politicamente colonizado.
    Este, embora de maneiras muito diversas acusou o golpe e se pretendeu, também, antirracista – Um antirracismo retórico, atenuado, e desatento às proposições potencialmente transformadoras da Consciência Negra. Tal postura funcionou, na verdade, como uma “volta por cima” para retomar a iniciativa: nos anos 90 se incrementou a criação de “espaços do negro”. Hoje quase não há espaço institucional que não abrigue um!
    O Movimento Negro se dividiu:
    a) Organizações negras que marcavam a diferença racial na busca de autonomia, de recursos, projetos, intervenção;
    b) E presença negra em todo o espectro institucional, aproveitando a “consciência culpada”, ou concessões ao “politicamente correto”, ou mesmo desejos sinceros, ainda que equivocados, de “ajudar o negro”.
    Ainda assim, o Movimento Negro aliado à ampliação da consciência social antirracista e a intervenções mais e mais qualificadas em diversos espaços conquistaram as Ações Afirmativas.
    E veio a reação. O novo século começa com ruidosos debates sobre a questão racial logo tornados “diálogos de surdos”: entre o antirracismo e (como há tempos no Brasil não há racistas!…), “anti-antirracistas”.
    O impasse atual
    Há, de fato, conquistas e avanços. Mas até onde podem ir, reféns que são de uma hegemonia cultural-ideológica, política e institucional, que vê apenas um “problema dos negros” e não uma questão racial determinante na reprodução das desigualdades sociais em nosso país?
    Haverá saída se ficarmos presos às teorizações disponíveis sobre a questão racial e aos modos e caminhos institucionais através dos quais a sociedade brasileira lida com o “problema dos negros”?
    É satisfatório o que a política institucional, e mesmo nosso pessoal (militantes do Movimento Negro) em espaços institucionais têm a dizer à família do Amarildo e a tantas outras, majoritariamente negras, em todas as regiões brasileiras, que amargam perdas para violências, torturas e covardias institucionalizadas em delegacias policiais e em outros micro-poderes ?
    E sobre as demandas crônicas – hoje agudas – de qualidade de serviços públicos em geral? Sobre as exigências de “aprofundar a democracia”, de “abrir” o poder público à participação social, para inaugurar novas prioridades em planejamentos econômicos, em perspectivas culturais; além de impedir “tradicionais” assaltos e apropriações de bens públicos por executivos, legislativo, judiciário?
    Consciência Negra Libertária será então um esforço para além do antirracismo: conectar reflexões e estratégias para superação das desigualdades raciais-sociais à potência das Jornadas de Junho e ao espírito que as desencadeou e presidiu.

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  10. Só através de tamanho reducionismo teórico do marxismo e da teoria interseccional para afirmar que ambos se completam ou se comunicam de alguma forma.

    Chegou a hora dos primeiros tomates. Vou deixá-los para Engels atirar, que provavelmente prevendo esta leitura rasa do marxismo, escreve ainda em 1890, em carta à Bloch: “segundo a concepção materialista da história, o fator que em última instância determina a história é a produção e reprodução da vida real. Nem Marx nem eu afirmamos, uma vez sequer, algo mais que isso. Se alguém o modifica, afirmando que o fato econômico é o único fato determinante, converte aquela tese numa frase vazia, abstrata e absurda. A situação econômica é a base, mas os diferentes fatores da superestrutura que se levanta sobre ela — as formas políticas da luta de classes e seus resultados, as constituições que, uma vez vencida uma batalha, a classe triunfante redige etc, as formas jurídicas e inclusive os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos que nelas participam, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as idéias religiosas e o desenvolvimento ulterior que as leva a converter-se num sistema de dogmas — também exercem sua influência sobre o curso das lutas históricas e, em muitos casos, determinam sua forma, como fator predominante”. Engels ainda se desculpa: “Se os mais jovens insistem, mais do que devem, sobre o aspecto econômico, a culpa em parte temos Marx e eu mesmo. Face aos adversários, éramos forçados a sublinhar este princípio primordial que eles negavam e nem sempre dispúnhamos de tempo, de espaço e de oportunidade para dar importância devida aos demais fatores que intervêm no jogo das ações e reações”.

    Essa leitura equivocada de um marxismo excessivamente economicista só serviu como entrave, além de abrir brecha para as análises desencarnadas do pós-modernismo. Essa análise de marxismo é uma análise que, se fosse levada a séria, terminaria por amputar a própria teoria marxista. Como falar de todos os âmbitos da superestrutura sem falar de cultura, religião e gênero?

    Mas porque será que o que Engels e Marx formularam como socialismo científico foi tão ignorado na história? A partir da queda do bloco soviético, a hegemonia burguesa se consagra vencedora, impondo sua ideologia na sociedade como um todo, através do neoliberalismo econômico, do desmantelamento das antigas formas de organização proletárias (ex: partidos políticos, organizações sindicais) e com o advento de novas tecnologias, que inseridas em uma concepção niilista de sociedade, acabaram contribuindo para concretização desse projeto individualista.

    Heleieth Saffioti, em seu livro “Gênero, Patriarcado e Violência”, nos explica como a teoria weberiana serviu como fundação e exerce grande influencia até hoje na diversidade de teorias burguesas que buscam superar Marx, o colocando como anacrônico:

    “As assim denominadas suspeitas, e até mesmo recusas veementes, com relação às explicações universais, não justificam a acusação de que os conceitos marxistas são incapazes de perceber o gênero. Weber está na base de porção significativa dos pensadores pós-modernos, sem que seus porta-vozes mais proeminentes, ou nem tanto, se interroguem a que conduzirá tão extremado relativismo ou se seus tipos ideais podem ser corretamente utilizados quando aplicados a situações distintas daquelas com base nas quais foram formulados.

    Grande conhecedora da obra de Weber (1964–1965) Maria Sylvia de Carvalho Franco (1972) mostra como o ordenamento dos fenômenos sociais é feito com princípios a priori, não apenas pelo autor em questão como também por outros idealistas filiados ao pensamento kantiano. A autora, detecta ,no pensador em pauta, a presença de uma “subjetividade instauradora de significados” como alicerce do objeto, o que lhe permite afirmar, a respeito da tipologia da dominação, o que o sentido empírico específico das relações de dominação é produzido pela atividade empírica de uma subjetividade. Este mesmo sentido define o objeto e constitui a auto-justificação por meio da naturalização das desigualdades.
    […]
    Observam-se, ao lado de um relativismo praticamente absoluto, outros pecados inaceitáveis até mesmo para aqueles em cujo pensamento Weber penetrou. Na medida em que o método e o objeto apresentam a mesma racionalidade, e a subjetividade instaura sentido, o primeiro ganha primazia: a razão é coextensiva à sociedade. Isso posto, não é difícil perceber as dificuldades, ou a impossibilidade, de se utilizarem conceitos weberianos em outros contextos.”

    Weber, no entanto, tinha um conceito de classe que se afastava do conceito marxista. Como Engels esclarece no início, para Marx a sociedade era marcada por um antagonismo fundamental entre todos aqueles responsáveis pela produção e reprodução condicionada da realidade social, e aqueles responsáveis por criar suas diretrizes. A questão fundamental nunca esteve ligada a uma moeda impressa ou qual a função que as pessoas precisam desempenhar para obte-las, mas sim a produção da vida real. Marx afirma que a vida é anterior, e a criação de um sistema econômico é apenas uma forma de atender as necessidades da vida, mas que uma classe dominante faz parecer que o próprio meio pelo qual a vida existe é o sistema econômico. Weber cumpre exatamente este papel, de disseminar muitas vezes de forma discreta, a ideologia burguesa, como Ranieri Carli examina em seu livro “György Lukács e as raízes históricas da sociologia de Max Weber”:

    “A análise do conceito de classe social em Weber precisa estar atenta para alguns pontos. Antes de tudo, 1) a responsabilidade por estar em determinada classe social é atribuída por inteiro ao sujeito; as oportunidades estão dadas no mercado e cabe ao sujeito aproveitá-las da maneira que lhe convém, conforme sua valoração subjetiva. Os homens apresentam-se em igualdade de condições ao mercado, é dada a largada, as chances são oferecidas e veremos quem terá sucesso ao fim. A superficialidade do conceito weberiano não nos diz absolutamente nada sobre as condições concretas de que partem os homens, sobre as contradições postas no processo produtivo, as quais já determinam sob que condições os homens chegarão ao mercado. Marx afirma que a produção determina a distribuição não só por realizar os objetos que serão distribuídos, mas por condicionar as formas particulares de participação no mercado.

    […]

    Além de que, 2) o conceito weberiano une inextricavelmente a situação de classe à situação de mercado. Não há classe quando não há mercado; as várias situações de classe estão sendo distribuídas diariamente no mercado e apenas nele. O destino casual no mercado prescreve o pertencimento de classe. Os homens que não estão livres para ir ao mercado não representam uma classe: “aqueles cujo destino não é determinado pela oportunidade de usar, em proveito próprio, bens e serviços no mercado, isto é, os escravos, não são, porém, uma ‘classe’, no sentido técnico da expressão. São, antes, um estamento” (Weber). A conjunção absoluta entre mercado e classe continua a seguir: “segundo nossa terminologia, o fator que cria ‘classe’ é um interesse econômico claro, e na verdade, apenas os interesses ligados à existência do mercado” (Weber). Logo, as classes sociais são um espaço fluido: de acordo com a nossa sorte no mercado, estaremos em determinada classe hoje e em qualquer outra amanhã. Deduz-se que os trabalhadores terão a opção de transformar-se em capitalistas assim que o humor do mercado lhes beneficiar.”

    Se a gente parar para refletir, a própria definição do conceito de gênero é uma classe weberiana. Por isso, tantas feministas marxistas ainda relutam em utilizá-lo. É possível traçar desde o início da história da luta de classes que a mulher foi relegada ao trabalho reprodutivo. (e aqui não falo somente de ato de gerar uma nova vida, mas sim desde limpar a casa, cuidar dos idosos, preparar a comida para o marido, enfim, todas as funções domésticas que garantem que o patriarca exerça sua função produtiva no capitalismo) Além do mais, com o advento do salário, o trabalho reprodutivo continuou assalariado. Fica claro que o gênero é uma ideologia criada para manter as mulheres em seus postos de trabalho. Identidade, segundo Marx, é como o indivíduo se reconhece perante uma ideologia dominante. Uma mulher precisa se identificar com o esteriótipo de ser mulher para se tornar um ser intelegível na sociedade. Ao mesmo tempo, é extremamente conveniente para o patriarcado que esse esteriótipo dite que mulher é frágil, submissa, e não competitiva. Se fossem o contrário, as mulheres seriam uma ameaça para os homens. A função da sociologia weberiana, no meio disso tudo, é classificar as pessoas, segundo os postos de trabalho, em modelos ideais que o mercado demanda. Por esse motivo, muitas feministas marxistas preferem não utilizar o termo “gênero”. Mirla Cisne, em “Feminismo e luta de classes no Brasil” explica:

    “Para sermos mais claras, partimos do pressuposto de que classe, “raça” e relações sociais de sexo (incluindo a sexualidade) não compõem apenas relações superpostas, tampouco adicionais ou mesmo com “intersecções”, como defende Crenshaw (1995) entre as relções de “gênero” e “raça”. Ao considerar, por exemplo, que elas seriam relações adicionais, ou seja, somáveis, cairíamos na segmentação positivista de entendê-las como relações separadas e não enoveladas, como nos propõem Saffioti:

    O importante é analisar estas contradições na condição de fundidas e enoveladas ou enlaçadas em um nó. […] Não que cada uma destas condições atue livre e isoladamente. No nó, elas passam a apresentar uma dinâmica especial, própria do nó. Ou seja, a dinâmica de cada uma condiciona-se à nova realidade. De acordo com as circunstâncias históricas, cada uma das contradições integrantes do nó adquire relevos distintos. E esta motilidade é importante reter, afim de não se tomar nada como fixo, aí inclusa a organização social destas subestruturas na estrutura global, ou seja, destas contradições no seio da nova realidade — novelo patriarcado-racismocapitalismo — historicamente constituída.

    Seguindo essa linha do pensamento de Saffioti, defendemos que as relações sociais de sexo, “raça” e classe são “consubstanciais” e “coextensivas”. […] Explica-nos Kergoat: As relações sociais são consubstanciais: elas formam um nó que não pode ser sequenciado ao nível das práticas sociais, apenas em uma perspectiva analítica da sociologia; e elas são co-extensivas: implantando as relações sociais de classe, de gênero e de “raça”, se reproduzem e se co-produzem mutuamente.”

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